Hemoglobina glicada – quando um bom exame gera confusão

Esta postagem foi publicada originalmente na área de membros do blog, mas agora também está disponível gratuitamente. Para ganhar acesso imediato a todo o acervo de postagens premium, receber novas publicações semanalmente e interagir nos comentários, assine a área de membros do blog Ciência Low-Carb.

RESUMO DA POSTAGEM:

- A hemoglobina glicada (HbA1c) é um exame que fornece uma estimativa dos valores médios de glicose no sangue nos últimos 60 a 90 dias.
- O percentual de hemoglobina glicada depende dos níveis médios de glicose no sangue.
- As hemácias vivem em torno de 50 dias, mas este número de dias varia de uma pessoa para outra.
- A variação na vida das hemácias pode levar a diferenças significativas nos níveis de HbA1c entre indivíduos com controle glicêmico similar.
- A HbA1c pode ser afetada por condições que alteram a vida das hemácias, resultando em resultados imprecisos.
- Estudos mostraram que as hemácias têm vidas médias variáveis, o que pode causar erros significativos na estimativa da glicemia média em até 1/3 dos pacientes.
- É importante considerar outros parâmetros clínicos além da HbA1c para fazer um diagnóstico preciso.
- Um único exame frequentemente não é suficiente para diagnosticar uma condição médica.

Às vezes escuto alguém dizer “minha glicemia é 100”, ou algum outro valor, dando a entender que, na maior parte do tempo, em jejum, este é o valor da sua glicemia, afinal foi este o valor que apareceu nos resultados dos seus últimos exames. A verdade é que a sua glicemia de jejum pode ser 80 hoje e 100 amanhã – não se trata de um valor estável. Se quiséssemos ter uma ideia da glicemia média, teríamos que fazer diversas medidas (ou usar um monitor contínuo de glicose, por exemplo) para poder fazer uma média.

Mas existe um exame que nos fornece esse dado com apenas uma amostra de sangue: a hemoglobina glicada (ou HbA1c). A HbA1c é um exame muito interessante pois permite fazer uma estimativa dos valores médios da glicose no sangue de uma pessoa nos últimos 60 a 90 dias. Mas como se dá essa mágica – de que forma uma coleta única de sangue fornece informações sobre um passado de até 3 meses? O que acontece é o seguinte: os glóbulos vermelhos (hemácias) são produzidos na medula óssea e saem de lá carregados de hemoglobina – a molécula que carrega o oxigênio e o CO2 – e que confere ao sangue a sua característica cor vermelha:

À medida que as hemácias circulam pelo corpo, elas vão encontrando moléculas de glicose no seu caminho e, de tempos em tempos, tais encontros levam a uma ligação permanente entre uma molécula de hemoglobina e uma molécula de glicose – o que chamamos de “glicação”. Desta forma, quando uma hemácia novinha em folha recém saiu do forno, zero por cento das suas moléculas de hemoglobina estão glicadas, pois não houve ainda oportunidade deste encontro fortuito com as moléculas de glicose. Por outro lado, se as hemácias vivessem para sempre, em determinado momento 100% das suas moléculas de hemoglobina acabariam glicadas, pois haveria tempo de sobra para que cada uma delas encontrasse uma glicose nas suas andanças pelo corpo humano. Mas o fato é que nossas hemácias têm uma vida finita, de em torno de 50 dias. Assim, o percentual da hemoglobina que será glicada depende dos níveis médios de glicose: em uma pessoa que tem uma glicemia média muito elevada, um número maior de moléculas de hemoglobina terá a oportunidade de se ligar a uma molécula de glicose durante o tempo de vida daquela hemácia. E é assim que, ao medirmos o percentual de hemoglobina glicada no sangue podemos estimar a glicemia média da pessoa nos últimos 60 a 90 dias. Mas percebam que esta conta só irá funcionar se a premissa de que as hemácias vivem o mesmo número de dias em todas as pessoas for verdadeira. Mas, infelizmente, não é o caso. Qualquer situação que leve a uma vida mais curta das hemácias, como por exemplo ter tido um episódio recente de sangramento, fará com que a hemoglobina glicada fique artificialmente baixa, ou seja, a hemoglobina glicada estará sugerindo uma glicemia média menor do que a glicemia média verdadeira da pessoa. Existe uma lista de condições que podem afetar a acurácia da hemoglobina glicada.

Mas o que muita gente não sabe é que o tempo de vida médio das hemácias pode variar de pessoa para pessoa mesmo que não estejam presentes nenhuma destas condições. Dito de outra forma, as hemácias não vivem o mesmo tempo em todo mundo, o que significa que a hemoglobina glicada pode dar resultados pouco fidedignos em algumas pessoas e levar a erros diagnósticos. O mais importante estudo a demonstrar isso foi publicado em 2008:

Neste artigo, a longevidade das hemácias foi mensurada diretamente, e eis que suas vidas médias variaram de 38 a 60 dias. Nas palavras dos autores:

(…)Assim, três pacientes com controle diabético idêntico poderiam ter níveis de HbA1c muito diferentes, de 7,5% a 9,9%, se tivessem idades médias de suas hemácias de 38,4 e 59,5 dias, respectivamente. Essas diferenças no HbA1c têm magnitude suficiente para afetar as decisões de tratamento. Um valor de HbA1c aparentemente aceitável, que não levaria a uma mudança no tratamento, pode ser considerado inaceitavelmente alto se o tempo de sobrevida das RBC fosse levado em consideração; e, no outro extremo, a medida de HbA1c pode corrigir para um valor muito menor se a longevidade das RBC for considerada. Nesse último caso, um tratamento excessivamente agressivo poderia ser instituído, aumentando o risco de hipoglicemia.

Em 2016, um estudo fez o caminho reverso e, usando monitores contínuos de glicose em centenas de pacientes, conseguiu ajustar as suas hemoglobinas glicadas medidas no laboratório de acordo com a sua glicemia média aferida pela monitorização contínua:

Os resultados indicam que aproximadamente 1 em cada 3 pacientes apresenta resultados de hemoglobina glicada que, devido à variação na longevidade das hemácias, resultam em estimativas de glicemia média com desvios de 15 mg/dl ou mais em relação às glicemias médias reais. Essa diferença corresponde a uma variação de 0,5% na HbA1c e pode levar a erros no diagnóstico. Em outras palavras, uma hemoglobina glicada de 6% (indicativo de pré-diabetes) poderia na verdade ser 5,5% (considerado normal) ou 6,5% (indicativo de diabetes), apenas devido à variabilidade na vida das hemácias. Esse cenário, repito, pode ocorrer em cerca de 1 a cada 3 pessoas – não é uma coisa rara!

O que fazer então?

A moral da história aqui é que quando algum exame parecer incompatível com outros parâmetros da história clínica do paciente, desconfie do exame. Vamos a um exemplo: imagine uma mulher saudável de 35 anos que pratica atividade física regularmente, tem 165 cm e 55 Kg, glicemia de jejum de 90, triglicerídeos baixos (70), HDL alto (70), insulina de jejum de 5 (baixa, ou seja, ótima) e uma Hb glicada de 5,7%. O que é mais provável? Que se trate de uma paciente pré-diabética (Hb glicada de 5,7%), ou que suas hemácias vivam em média 60 dias? Se suas hemácias tiverem uma vida média de 60 dias, sua Hb glicada seria na verdade 5,2% caso suas hemácias vivessem o tempo mediano, de 50 dias.

É por este motivo que não se trata o exame – não vamos considerar esta mulher como se tivesse pré-diabetes e precisasse de metformina. Assim como uma andorinha apenas não faz verão, um único exame (em geral) não faz diagnóstico.

Quando existe essa discrepância ente a HbA1c e o quadro clínico do paciente, uma alternativa muito interessante é o uso do monitor contínuo de glicose. Através desse dispositivo, é possível medir diretamente a glicemia média – e estimar a hemoglobina glicada.

Esta postagem foi publicada originalmente na área de membros do blog, mas agora também está disponível gratuitamente. Para ganhar acesso imediato a todo o acervo de postagens premium, receber novas publicações semanalmente e interagir nos comentários, assine a área de membros do blog Ciência Low-Carb.

Área de Membros Ciência Low-Carb

Acesso a conteúdo
premium exclusivo