Posicionamento da ABESO

Esta postagem foi publicada originalmente na área de membros do blog, mas agora também está disponível gratuitamente. Para ganhar acesso imediato a todo o acervo de postagens premium, receber novas publicações semanalmente e interagir nos comentários, assine a área de membros do blog Ciência Low-Carb.

A ABESO é uma entidade muito importante, pois seus objetos de estudo representam os nossos maiores desafios de saúde pública: obesidade e síndrome metabólica. Chegou ao meu conhecimento, tardiamente, um detalhe da introdução de um documento denominado Posicionamento sobre o tratamento nutricional do sobrepeso e da obesidade : departamento de nutrição da Associação Brasileira para o estudo da obesidade e da síndrome metabólica (ABESO – 2022).

O fato de ter uma visão diferente da interpretação de alguns pontos das evidências científicas, não diminui a minha percepção da importância da ABESO no cenário nacional. É uma instituição séria, com profissionais respeitados e com um papel muito importante na divulgação do impacto da obesidade e do seu correto tratamento.

Creio que o que fez com que esse documento voltasse a ser assunto foi o fato de que uma parte dele foi publicada semana passada no periódico Diabetology & Metabolic Syndrome:

Esta versão que foi publicada em inglês é a mesma que consta no documento original de 2022 da ABESO. Eu gostaria de começar saudando a boa revisão sobre low-carb que consta no Posicionamento sobre o tratamento nutricional do sobrepeso e da obesidade a partir da página 147. Vou salientar alguns trechos que me parecem importantes:

(…)os resultados de ensaios clínicos randomizados (RCTs) ainda são divergentes. Muitos mostram superioridade da dieta pobre em carboidratos – low carb - em relação à dieta pobre em gorduras na perda de peso, porém esses estudos avaliam a perda de peso em curto prazo, em geral, menos de um ano.

Sobre essa questão – a de que nem low-carb, nem NENHUMA outra estratégia de estilo de vida costuma demonstrar superioridade após 12 meses, escrevi uma postagem cuja leitura julgo ser fundamental (leia aqui). Mas saliento um pequeno trecho: “Todas as intervenções de estilo de vida – TODAS – perdem efetividade com o tempo e, se o estudo for suficientemente longo, acabarão sem diferença estatisticamente significativa em relação ao grupo controle. O exercício físico não perde a eficácia com o tempo, as pessoas (enquanto grupo, na média) é que deixam de praticar exercício. Mas o exercício é eficaz para o que se propõe, e por isso orientamos o indivíduo a praticá-lo mesmo assim. Uma estratégia low-carb não deixa de funcionar após 6 meses, as pessoas é que deixam de seguir a estratégia (enquanto grupo, na média)”.

Mas, como a ABESO muito bem salienta, as evidências mostram benefícios das dietas low-carb que vão muito além do emagrecimento:

Também já foi observado aumento do gasto energético total, da adiponectina, da oxidação de gorduras, das concentrações plasmáticas de HDL-colesterol e redução nos níveis de triglicérides, e maior redução da circunferência abdominal com dietas restritas em carboidrato.

Neste outro trecho, abaixo, observa-se que low-carb é claramente uma alternativa válida para a perda de gordura, havendo inclusive superioridade quanto a outras dietas (em geral dietas de restrição de gorduras):

Estudo de metanálise avaliou o efeito de dietas low carb (muito pobres em carboidrato ou com restrição moderada de carboidratos) em relação à dieta controle contendo de 46 a 55% do valor energético total da dieta (VET) de carboidratos, 15 a 25% do VET de proteínas, 20 a 30% do VET de gorduras ou manter a alimentação habitual na perda de peso em adultos com excesso de peso. Foram incluídos 14 RCTs, com um total de 1.805 participantes (906 submetidos à dieta com restrição de carboidratos e 899 à dieta controle) e o tempo de seguimento variou entre 2 e 24 meses. Nos estudos com menos de 12 meses de duração, observou-se perda de peso e de gordura maior nos pacientes que foram submetidos à dieta low carb. Nos estudos com mais de 12 meses de duração, a diferença na perda de peso entre os grupos não foi significativa, porém, ainda assim, houve maior perda de gordura com a restrição de carboidratos.

Seguindo adiante, a ABESO fala de outra metanálise, que por sua vez sumariza 10 outras metanálises (ou seja, é uma metanálise de metanálises):

Verificou-se que, em metanálises com maior restrição de carboidratos e com duração mais curta, a perda de peso foi significativamente maior em relação às dietas com restrição de energia ou gordura. Porém, quando a quantidade de carboidratos foi menos restrita e o seguimento mais longo, esse efeito foi atenuado.

Minha leitura desse trecho é a de que, ao que tudo indica, quanto mais low-carb, melhor o resultado, e que o resultado é melhor nos estudos mais curtos. Como argumentei anteriormente, é justamente nestes estudos de até 6 meses as pessoas ainda estão seguindo a estratégia mais à risca. Mas esta mesma metanálise pontua o seguinte:

Considerando-se a qualidade das metanálises, houve superioridade da dieta low carb na perda de peso quando a qualidade foi criticamente baixa, os resultados foram inconsistentes em metanálises de qualidade moderada e houve pouca ou nenhuma diferença quando a metanálise tinha alta qualidade.

Eu li essa metanálise de metanálises na época em que foi publicada, e o fato que é que as metanálises consideradas de alta qualidade foram as que avaliaram estudos de longa duração. Como já argumentei anteriormente, nestes estudos, TODAS as intervenções de estilo de vida tendem à nulidade, não porque deixem de funcionar, mas porque as pessoas, na média, vão deixando de seguir (não estou aqui falando apenas de low-carb ou apenas de dieta). Por exemplo, uma das poucas metanálises que o estudo considerou de ALTA qualidade é um estudo de 2013 (feito na Universidade Federal de Alagoas, por sinal) que, sem dúvida é um excelente estudo, mas que considerou EXCLUSIVAMENTE estudos com duração de 12 meses ou mais. Mas sabe o que aquele estudo concluiu? “Os indivíduos designados para uma dieta cetogênica muito baixa em carboidratos (VLCKD) apresentaram redução de peso corporal (diferença média ponderada de -0,91 kg, triglicerídeos e pressão arterial diastólica, enquanto o HDL-C aumentou e o LDL-C também aumentou. Os indivíduos submetidos à VLCKD alcançaram uma maior perda de peso do que aqueles submetidos a uma dieta com baixo teor de gordura (LFD) a longo prazo; portanto, a VLCKD pode ser uma ferramenta alternativa contra a obesidade.”

De fato, 900 gramas de diferença não é algo clinicamente significativo. Mas há um ponto importante a salientar: mesmo que aceitemos que, após 12 meses, na média, low-carb e low-fat são a mesma coisa (pois a média das pessoas não está mais seguindo direito), não há na literatura nenhuma metanálise mostrando que qualquer outra dieta seja superior à low-carb em 12 meses. A única conclusão possível é que se trata de uma alternativa válida, talvez levemente superior às demais (é o que os números acima mostram).

A ABESO termina assim a sua avaliação sobre low-carb:

Por fim, a dieta low carb induz redução de peso em estudos de curta a média duração (3-6 meses) (Classe de Recomendação IIa, Nível de evidência A) e parece ser segura em curto prazo, podendo estar relacionada à restrição da opção de alimentos, monotonia e simplicidade da dieta, além do efeito mais potente da proteína na saciedade. Porém, a dieta low carb não induz maior perda de peso em relação a outros tipos de dieta em estudos de longa duração (Classe de Recomendação IIa, Nível de evidência A).

Ou seja, a evidência claramente estabelece a eficácia (que é o que se mede no início , quando as pessoas estão de fato seguindo) superior de low-carb quando comparada à low-fat. A efetividade, porém, se reduz com o tempo, como ocorre com a totalidade das intervenções de estilo de vida (incluindo exercício físico, cessação de tabagismo, etc), de modo que é necessário oferecer suporte e apoio às pessoas para aumentar a adesão, além de respeitar as suas preferências. Uma pessoa que aprecia os tipos de alimentos disponíveis em low-carb tem mais chance de aderir; outra pode preferir uma dieta mediterrânea ou vegetariana. Mas todas as opções baseadas em evidência devem ser oferecidas, certo?

Uma tabela estranha

O Posicionamento sobre o tratamento nutricional do sobrepeso e da obesidade : departamento de nutrição da Associação Brasileira para o estudo da obesidade e da síndrome metabólica (ABESO – 2022) é um documento extenso, com 260 páginas. Eu suponho que diferentes segmentos tenham sido escritos por diferentes grupos de autores. Me causou tremenda estranheza a seguinte tabela, encontrada na INTRODUÇÃO do documento:

Há contradição entre o texto da ABESO e a tabela da introdução

Na tabela acima, marquei em verde todas as opções que foram consideradas aceitáveis para o tratamento da obesidade e sobrepeso, por serem baseadas em dados de ensaios clínicos randomizados. Como a própria revisão da ABESO deixa amplamente claro (exemplos reproduzidos nesta postagem), a estratégia low-carb tem dezenas de ensaios clínicos randomizados indicando a sua utilidade no manejo dessas condições. Mas em low-carb, e apenas e tão somente em low-carb, há 2 asteriscos que significam “Estratégia e resultado não sustentáveis em longo prazo”.

De fato, os estudos demonstram que, após 12 meses, a média das pessoas alocadas ao grupo low-carb dos estudos já não está seguindo a estratégia como deveria, motivo pelo qual os bons resultados observados em 3 a 6 meses vão se atenuando. Mas isso é igualmente verdade para todas as dietas que possuem boas evidências para perda de peso, sem nenhuma exceção.

Porém, as seguintes dietas constam na mesma tabela, e não mereceram os asteriscos de “Estratégia e resultado não sustentáveis em longo prazo”: dieta de baixa caloria, dieta de muito baixas calorias e substitutos de refeição, bem como vegetariana. Não creio que alguém imagine que dietas de muito baixa caloria ou à base de shakes sejam “estratégias e resultado sustentáveis em longo prazo”. Dietas que eliminam um grupo inteiro de alimentos, o que não é o caso da low-carb, podem ser difíceis de sustentar no longo prazo. Este é o caso da dieta vegetariana. Não obstante, há milhões de pessoas que adotam essa estratégia alimentar no longo prazo, assim como há uma legião que adota low-carb no longo prazo. O importante é ampliar, e não limitar opções. O que nos traz a outra questão nessa tabela.

A última coluna tem as recomendações da ABESO. Chama a atenção que as únicas estratégias não recomendadas sejam low-carb. Qual seria o critério? Se o critério fosse a eliminação de um grupo inteiro de alimentos, faria sentido não indicar a vegetariana. Se o critério fosse a dificuldade, faria sentido não recomendar a de muito baixa caloria e as de substituição por shakes. Se o critério fosse a sustentabilidade no longo prazo, as de muito baixa caloria e a substituição por shakes não poderiam ser recomendadas. Da forma como está, parece ter havido um equívoco.

Low-carb não é a única estratégia de estilo de vida válida para emagrecer. Longe disso. Mas em um contexto de epidemia de obesidade e diabetes, precisamos de mais alternativas, não de menos. Quando a tabela não recomenda apenas low-carb e cetogênica (embora deixe claro que são baseadas em evidências), isso, com efeito, significa que a contraindica. Essa atitude reduz o espectro de alternativas a serem oferecidas para as pessoas, ao passo que recomenda opções que claramente são menos sustentáveis no longo prazo, como shakes ou restrição calórica severa.

A sustentabilidade no longo prazo de um padrão alimentar, seja ele vegetariano, vegano, low-carb, low-fat, tem a ver com preferências e valores individuais. Um padrão que pode ser considerado ideal por um indivíduo, pode ser considerado fora de cogitação por um outro. Desde que os padrões sejam baseados em evidência – e a ABESO indicou que são – cabe ao profissional de saúde e ao paciente a decisão, claramente subjetiva, sobre o que é sustentável ou não no longo prazo.

Fica a minha sugestão para que a tabela da introdução do posicionamento da ABESO seja reavaliada a fim de refletir o que o próprio texto do capítulo 5.14 explica de forma tão adequada: que low-carb é mais uma alternativa válida e eficaz a ser oferecida aos pacientes.

Dieta de baixa caloria, substituição de refeições por shakes, vegetariana, low-carb… Qual das estratégias você acha que é mais sustentável a longo prazo?

Para ganhar acesso imediato a todo o acervo de postagens premium, receber novas publicações semanalmente e interagir nos comentários, assine a área de membros do blog Ciência Low-Carb.

Área de Membros Ciência Low-Carb

Acesso a conteúdo
premium exclusivo