Eritritol é seguro?

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30/05/2024 – ATUALIZAÇÃO

A última frase da postagem sobre esse tema em 2023 havia sido: “Algo me diz que ainda falaremos bastante sobre esse assunto no futuro.” Chegou a hora de voltarmos a falar dele.

Quando eu escrevi a postagem original, eu já sabia que o próprio corpo produz uma certa quantidade de eritritol – inclusive isso já constava no primeiro parágrafo (coloquei agora em negrito). Mas eu não me dei conta de uma coisa básica, que o dr Peter Attia flagrou:

(...)De fato, Witkowski et al. notam que a vasta maioria dos participantes do estudo foi inscrita antes de o eritritol se tornar um adoçante e aditivo alimentar comum. Isso, combinado com a descoberta dos autores de que os níveis de eritritol permanecem bem acima dos níveis dos grupos por pelo menos um dia após o consumo, sugere que nenhum dos pacientes dos grupos estava consumindo eritritol em suas dietas, e que os níveis medidos nas amostras de plasma em jejum foram, em vez disso, resultado da produção endógena.

A seguir, gravei um áudio fazendo a atualização do meu pensamento sobre o assunto:

Segue a postagem original de 2023:

O Eritritol é um adoçante muito usado como substituto do açúcar devido a diversas características interessantes. Tem poder adoçante e aspecto semelhantes ao do açúcar, não afeta a glicemia ou a insulina significativamente, quase nao possui calorias, e até hoje sempre foi considerado seguro. Ao contrário do que tenho visto ser dito por aí, é tecnicamente um adoçante natural, visto que está presente em pequenas quantidades em frutas, além de existir naturalmente no corpo humano em quantidades diminutas. Embora o eritritol disponível comercialmente não seja extraído diretamente de plantas, e sim seja sintetizado enzimaticamente a partir da glicose, isso não o torna artificial – é rigorosamente a mesma molécula. Diferentemente dos outros polióis (xilitol, sorbitol, etc), o eritritol é quase todo absorvido pelo intestino – sendo esse o motivo pelo qual não costuma produzir efeitos colaterais digestivos. E, diferentemente de outros polióis, é quase todo excretado intacto pela urina. Parece um adoçante ideal, não é mesmo?

Mas acaba de ser publicado um estudo que não podemos ignorar:

O estudo é composto por várias fases e levou vários anos para ser conduzido:

PASSO 1 – Os pesquisadores começaram fazendo uma busca aleatória – uma verdadeira pescaria – por substâncias que pudessem estar associadas com risco aumentado de “eventos cardiovasculares maiores” em pessoas que estavam prestes a se submeter a um cateterismo cardíaco na Cleveland Clinic (usando um método chamado “metabolômica”, que mede muita coisa de forma semi-quantitativa). Essas pessoas foram acompanhadas por 3 anos. Ao final de 3 anos, a substância que estava no topo da lista de coisas associadas a desfechos ruins era o eritritol. Como é um estudo observacional, isso não estabelece causa efeito e, a rigor, poderia ser apenas uma coincidência, dado que estavam medindo tudo o que era possível medir, o que gera necessariamente diversas associações por puro acaso. Se fosse só isso, eu nem estaria escrevendo essa postagem.

PASSO 2 – Os pesquisadores escolheram duas outras coortes semelhantes (pessoas de alto risco cardiovascular, uma nos EUA e outra na Alemanha) e fizeram o contrário: mediram diretamente o eritritol no sangue dessas pessoas (de forma quantitativa, precisa) e os acompanharam por 3 anos. A mesma associação foi observada – e não era pouca coisa. Mesmo após ajuste para variáveis de confusão (obesidade, diabetes, etc), os que tinham níveis mais altos de eritritol no sangue apresentavam um risco cerca de DUAS vezes maior de desenvolver eventos cardíacos maiores (morte, infarto, derrame). É um risco relativo de 2, que chama atenção, diferentemente dos habituais riscos relativos de, por exemplo, 1,15 que costumam gerar manchetes tolas por aí. Mas ainda assim, seguia sendo um estudo observacional prospectivo, e a chance de haver aqui causalidade reversa era grande. O que eu quero dizer com isso? Quem usa mais eritritol é quem deseja emagrecer ou quem é diabético – pessoas que estão ativamente tentando substituir o açúcar. E essas pessoas obviamente têm risco maior de desenvolver infarto, derrame ou de morrer – sobretudo em uma coorte de pessoas que estava sendo submetida a cateterismo cardíaco (ou seja, já eram de alto risco por definição). Assim, os níveis mais altos de eritritol podem ser marcadores de outras coisas (diabetes, obesidade), e essas coisas podem ser o que de fato aumenta o risco dos eventos cardiovasculares. O fato de que o risco relativo para esses eventos era de cerca de 4, mas que baixou para 2 após ajuste para essas variáveis, sugere fortemente que uma parte do efeito fosse mesmo causalidade reversa. Mas 2 ainda é um número alto (dobro do risco) – embora eu já tenha escrito sobre o quão ruim podem ser estes ajustes matemáticos (leia aqui). Mas segue sendo um estudo observacional, que por isso não pode estabelecer causa efeito e, embora interessante, provavelmente eu nem estaria escrevendo essa postagem se a coisa tivesse se encerrado aqui: a chance de viés, sobretudo de causalidade reversa, é muito alta.

Mas então os autores tiveram um insight: os eventos que estavam ocorrendo eram de natureza trombótica, isto é, quando um coágulo (trombo) se forma em uma artéria, cortando o seu fluxo. É o que acontece no infarto agudo do miocárdio (um trombo que se forma dentro da coronária, bloqueando a passagem do sangue e levando à morte do tecido cardíaco) e no acidente vascular cerebral isquêmico (o tipo mais comum de “derrame”), no qual a trombose ocorre em um vaso que alimenta o cérebro. E acontece que o componente sanguíneo que dá início e que compõe uma parte importante dos trombos chama-se plaquetas. Quando você corta o dedo, o que faz o sangue coagular e parar de sair é a “ativação” das plaquetas (no caso, elas se ativam quando entram em contato com componentes do tecido, como o colágeno, que estão fora do vaso sanguíneo, que está cortado). Isso, obviamente, é uma coisa boa: plaquetas sendo ativadas quando há ruptura de um vaso sanguíneo. O problema é quando isso ocorre dentro de um vaso sanguíneo ESPONTANEAMENTE: plaquetas sendo ativadas dentro das suas coronárias são um atalho para o cemitério. É por este motivo que os médicos empregam medicamentos que reduzem a ativação e agregação plaquetárias, como AAS e clopidogrel, em quem tem alto risco cardiovascular: tudo o que você não quer é uma substância que aumente a ativação das plaquetas.
E o insight dos autores foi o seguinte: será que o eritritol poderia, de alguma forma, estar afetando o funcionamento das plaquetas?

PASSO 3 – Testes in vitro. Os autores fizeram vários testes submetendo plaquetas humanas isoladas a concentrações de eritritol que são compatíveis com as encontradas nas pessoas, e houve aumento importante da reatividade dessas plaquetas (tal aumento não foi visto com os controles: glicose e um outro poliol de ocorrência natural no corpo humano chamado 1,5-AHG). A seguir, utilizando sangue humano de doadores, passaram este sangue em um dispositivo que simula vasos sanguíneos e, novamente, conseguiram produzir um aumento da aderência das plaquetas e de trombose neste modelo de laboratório, quanto se acrescentou eritritol (mas não com os controles). Os pesquisadores demonstraram, ainda, que o eritritol e favorecia a entrada de cálcio para dentro das plaquetas (que é um passo essencial para a ativação das mesmas). Tudo isso é muito interessante, mas há MUITA coisa que acontece in vitro e que não se reproduz in vivo. Até aqui, segue sendo uma hipótese intrigante.

PASSO 4 – Testes in vivo: aqui, camundongos receberam eritritol, placebo ou 1,5-AHG, foram devidamente anestesiados e foi provocado uma pequena lesão em suas artérias carótidas – o tipo de lesão que provoca ativação e adesão das plaquetas e a formação de um trombo. Foi possível acompanhar em tempo real a adesão das plaquetas e formação do trombo até ocorrer a oclusão total do vaso. A velocidade de formação do trombo e de oclusão total da carótida foi praticamente o dobro nos camundongos que receberam o eritritol.
E essa é a parte do estudo em que eu comecei a me preocupar, pois não podemos ignorar um mecanismo como esse em um estudo in vivo. Sim, é em roedores, mas as doses empregadas de eritritol são compatíveis com as encontradas no sangue dos pacientes do estudo, e o processo de coagulação, incluindo ativação de plaquetas e formação de trombos, é muito parecido ente humanos e camundongos. E, não vamos esquecer, nos estudos in vitro (passo 3), o fenômeno foi reproduzido com plaquetas e sangue humanos. A partir deste momento, passamos a ter PLAUSIBILIDADE.

PASSO 5 – teste em humanos: aqui, 8 voluntários sadios (e que não consumiam produtos este adoçante) receberam 30 gramas de eritritol na forma de uma bebida. Trinta gramas não é nenhum absurdo, e pessoas que consomem muitos produtos low-carb facilmente ingerem quantidades como essa de tempos em tempos. Os níveis de eritritol no sangue dos voluntários elevaram-se 1000 vezes em relação aos valores basais, e tal elevação persistiu por dois dias. Não vamos nos fixar em 1000 vezes. Provavelmente o mesmo poderia se dizer dos níveis de álcool no sangue após beber uma taça de vinho, visto que os níveis de etanol normalmente presentes no sangue são baixíssimos, qualquer consumo produz uma grande elevação. Assim como no álcool, o que importa são os níveis absolutos atingidos no sangue. E os níveis de eritritol atingidos no sangue permaneceram acima dos valores necessários para que todos os efeitos descritos até aqui (nas plaquetas in vitro, no sangue humano in vitro, e nos roedores in vivo) ocorressem.
FALTOU testar as plaquetas dessas pessoas antes e depois – caramba, como os caras fazem um estudo MONUMENTAL como esse e pulam essa parte?? Me deu vontade de gritar! Assim, o teste em humanos apenas mostra que os níveis de eritritol atingidos nos voluntários são os mesmos que, em roedores e em tubo de ensaio, provocaram problemas que podem levar à trombose. Ainda há estudos a fazer, portanto, em humanos.

Cautionary Tale – uma história de advertência

Os mais jovens talvez não lembrem, mas 20 anos atrás um anti-inflamatório chamado Vioxx foi retirado do mercado em meio a um escândalo. Resulta que o Vioxx aumentava infartos e derrames, o fabricante (Merck) sabia e omitiu a informação nos ensaios clínicos randomizados, e a coisa acabou em indenizações bilionárias e mudanças nas regras para aprovação de novos medicamentos. Mas o detalhe que importa aqui é o seguinte: o Vioxx aumentava a ativação e a agregação plaquetárias. E havia estudos pré-clínicos (in vitro, in vivo) que mostravam isso. Que foram solenemente ignorados. E deu no que deu.

Acontece que, diferentemente do que ocorre com medicamentos, nunca houve ensaios clínicos randomizados com milhares de pessoas e alguns anos de duração com eritritol (ou de resto com qualquer poliol ou com adoçantes em geral). E eu penso que, agora que este estudo foi publicado, não temos como “desver”.

Pode ser que as duas coortes (americana e alemã) tenham apenas encontrado uma associação sem que haja causa efeito? Certamente, embora o risco relativo encontrado tenha sido alto. Pode ser causalidade reversa? Sim, e estou convencido de que os diminutos riscos relativos encontrados para alguns adoçantes e certas doenças são totalmente explicados por isso. Pode ser que os efeitos observados sobre as plaquetas in vitro não representem o que acontece in vivo? Com certeza, e não seria a primeira vez. Pode ser que os efeitos observados nos camundongos não sejam reproduzidos em seres humanos? Sim, até porque há algumas diferenças conhecidas nas plaquetas das duas espécies, sendo que as plaquetas dos camundongos são naturalmente mais reativas do que as dos humanos. Pode ser que tudo isso seja verdade e que o eritritol seja completamente seguro em humanos? Pode, mas é provável em vista de todos esses resultados? Até ontem eu achava que sim; hoje, eu tenho dúvidas.

O estudo achou uma diminuta associação, na sua parte exploratória (aquela que mediu tudo para ver se achava algo) entre xilitol e desfechos cardiovasculares. O fato de que o xilitol é pouco absorvido me faz pensar que talvez os poliois mais laxativos (xilitol, sorbitol) sejam mais seguros pois não atingem doses elevadas no sangue – em sendo verdade tudo isso. As 3 coortes utilizadas (a exploratória e as duas confirmatórias) eram compostas por pessoas pessoas de ALTO risco cardiovascular: eram indivíduos que estavam indo fazer um cateterismo cardíaco, algo que ninguém faz sem um bom motivo. É, portanto, prematuro concluir que, mesmo que o efeito deletério do eritritol seja real, pessoas de baixo risco, saudáveis, venham a ser afetadas da mesma forma – não sabemos.

O estudo foi publicado ontem. Ainda não sei o tamanho da repercussão que terá, mas suspeito que será muito grande, e acho que merece ser mesmo. Com certeza, diversos outros grupos de pesquisadores tentarão reproduzir (ou refutar) estes resultados. E os testes em humanos terão que ser feitos. Primeiramente, apenas medindo a reatividade e adesão das plaquetas após a exposição de voluntários ao eritritol. Mas eu acho que é chegada a hora de conduzir um ensaio clínico randomizado de grandes proporções, financiado por uma agência governamental com o NIH, com milhares de pessoas e desfechos duros: infartos, derrames, morte, testando inclusive outros poliois. Eu pelo menos não consigo fazer de conta que o presente estudo não existiu.

O que eu penso sobre tudo isso, em suma?

Diabetes aumenta o risco cardiovascular em 10 (dez) vezes. Eu não duvido que, mesmo que seja verdade que o eritritol aumente o risco cardiovascular em 2 vezes como o presente estudo sugere, um paciente que deixe de ser diabético por seguir uma dieta low-carb (com eritritol) ainda tenha o seu risco reduzido. Isso posto, há outros adoçantes – tá aí a estévia que, em todos os estudos que eu já vi, está associada somente com benefícios. Não creio que seja prudente ignorar os resultados do presente estudo.

Para pessoas saudáveis o risco individual do eritritol (CASO se confirme que o risco é real) é baixo. A esmagadora maioria das pessoas que usou Vioxx, por exemplo, não morreu nem teve um infarto por causa disso. Eu cheguei a usar esse medicamento na época, e era realmente muito bom para alívio da dor. Mas hoje eu não usaria, sabendo o que sabemos. Afinal, há outros anti-inflamatórios mais seguros. Eu tenho eritritol em casa e não vou jogar fora. Mas, quando terminar, não vou mais comprar – não até que os novos estudos sejam feitos e, no mínimo, que outros grupos tenham tentado reproduzir os resultados do atual sem sucesso. Algo me diz que ainda falaremos bastante sobre esse assunto no futuro.

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