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Nos anos 1980 foi descrito um fenômeno que, hoje sabemos, é muito comum em pessoas com diabetes e pré-diabetes. Mesmo que a glicose esteja bem controlada durante todo o dia (seja com medicação, seja com estilo de vida), o valores insistem em subir pela manhã em alguns indivíduos. E não, não é por que comeram sucrilhos ou aveia com banana. A glicose sobe em jejum! Não raro, tal subida começa ainda no final da madrugada – muitas horas após a última refeição.
O chamado fenômeno do alvorecer costuma gerar muita confusão. Alguém com bom controle de glicose durante a maior parte do dia pode achar que o controle está ruim, caso meça apenas pela manhã em jejum. Pessoas que adotam um estilo de vida low-carb com o objetivo de colocar a doença em remissão (ou de melhorar o controle glicêmico) podem ficar muito frustradas – e até mesmo desistir – porque a glicose pela manhã não se normaliza a despeito de seus esforços. Mas, para a maioria das pessoas, foi um pequeno dispositivo eletrônico que lançou luz sobre a existência desse fenômeno: o monitor contínuo de glicose:
No momento em que escrevo essa postagem, temos apenas uma marca à venda no Brasil – o Libre. Com o tamanho aproximado de uma moeda de 1 real e duração de 14 dias, fica grudado atrás do braço, medindo a glicose a cada 5 minutos e armazenando os valores na memória. Com a aproximação do celular ou de um leitor próprio, é possível fazer o download dos dados, e o que se vê é um gráfico com a flutuação da glicemia durante as 24 horas. Subitamente, milhares de pessoas estão visualizando o fenômeno do alvorecer – e se perguntando “o que estou fazendo errado”? Observe esse gráfico:
Várias coisas chamam a atenção nesse gráfico, como descrito na legenda acima, mas o que eu gostaria de salientar é que o controle da glicemia está muito bom na maior parte do dia, mas a pessoa não saberia disso, caso medisse apenas pela manhã em jejum.
Por que acontece?
Vários hormônios que antagonizam o efeito da insulina são secretados durante a noite e no final da madrugada – em todas as pessoas, não apenas nos diabéticos. Entre ele o hormônio do crescimento (GH), o cortisol e as catecolaminas (noradrenalina, por exemplo). Isso faz com que o fígado secrete mais glicose neste horário e, mais uma vez, isso acontece em todos nós. Acontece que esse excesso de glicose é facilmente contrabalançado por um pequeno aumento na secreção de insulina – de modo que, em pessoas metabolicamente saudáveis, a elevação da glicose nem sequer é percebida. Mas o que acontece quando a pessoa tem resistência à insulina, de modo que essa pequena elevação da insulina não é eficaz? Ou quando há prejuízo parcial (ou total, como no DM1) na capacidade de produzir insulina? É nestas pessoas que veremos a elevação perceptível da glicemia – o fenômeno do alvorecer.
Quais as implicações?
É incerto se o fenômeno do alvorecer produz prejuízo – vai depender da sua intensidade e duração. Uma pequena elevação todas as manhãs, com valores normais no restante do dia e hemoglobina glicada (o exame que estima a média da glicemia por 60-90 dias) normal provavelmente não tem maior importância. Há situações, porém, em que a elevação é grande e duradoura o suficiente para justificar o emprego de medicação (ou ajuste da insulina, dependendo do caso).
Outra implicação, como eu já disse anteriormente, é a de gerar confusão e erro diagnóstico quando as únicas medições da glicemia são aquelas realizadas pela manhã em jejum (seja no laboratório, seja na ponta de dedo). Um paciente como o do gráfico acima poderia dar a impressão de que sua glicemia é sempre 140 ou mais, quando a realidade é que seu único valor ruim é em jejum pela manhã; sem uma monitorização contínua, poderia até acabar sobremedicado.
Sei que para muitos o custo do sensor é proibitivo. Espero que haja redução de preço quando houver concorrência no mercado brasileiro. Feita essa ressalva, acho que TODOS os diabéticos e pré-diabéticos se beneficiariam de usar o Libre, pelo menos por um tempo, para entender 1) o efeito dos alimentos na sua glicemia e 2) para poder enxergar o seu fenômeno do alvorecer e quantificá-lo.
O que pode ser feito?
Na grande maioria das vezes, o problema subjacente é a resistência à insulina, que é causada por excesso de gordura visceral. Quando uma pessoa diabética ou pré-diabética coloca um Libre e percebe as grandes elevações da glicemia provocadas por refeições ricas em carboidratos e passa a adotar uma dieta low-carb, a melhora da curva é IMEDIATA. Exceto pelo fenômeno do alvorecer. Acontece que o fenômeno do alvorecer depende do emagrecimento para melhorar (se o problema for resistência à insulina, e não falência pancreática). Assim, pode levar vários meses até que os valores da glicemia matinal se normalizem – mesmo que você esteja seguindo uma dieta low-carb impecável.
Dez anos atrás eu escrevi uma postagem denominada “Por que a glicemia de jejum pode aumentar”? Agora que você já entendeu o fenômeno do alvorecer fica mais fácil de entender o que eu tentava explicar naquela postagem antiga: por que pessoas saudáveis que adotam uma dieta very low-carb apresentam, por vezes, uma elevação PEQUENA da glicemia de jejum, mesmo tendo emagrecido, reduzido a hemoglobina glicada, aumentado o HDL e diminuído os triglicerídeos. É que essas pessoas apresentam um certo grau de resistência à insulina fisiológica, que ocorre tanto durante o jejum prolongado como durante uma dieta cetogênica. Coincidentemente, resistência à insulina fisiológica é o tema do episódio de hoje do podcast Comida Sem Filtro:
Tendo escutado o episódio acima, a explicação do que se vê, por vezes, em indivíduos saudáveis em dieta cetogênica, deve ficar clara para você: é, no fundo, um “mini-fenômeno-do-alvorecer” fisiológico.