A ilusão de segurança

A crônica começa assim: era uma vez um rico comerciante – Simplício era seu nome. Simplício tinha origem humilde, trabalhou desde muito cedo, conheceu na infância os perigos das periferias das grandes cidades. Agora que havia terminado a casa dos seus sonhos – um grande sobrado com piscina e um amplo jardim com muitas árvores e plantas ornamentais – sua única preocupação era a segurança. Não queria correr o risco de perder o que construíra à custa de tanto esforço.

Simplício era um homem bem sucedido, mas a verdade é que sua preocupação com a segurança o deixava acordado à noite. Muito embora possuísse itens de segurança básicos – um muro alto, portão de ferro, trancas nas portas – ele ainda perdia o sono pensando “mas e se alguém pular o muro? Mas e se alguém entrar pela janela”? Dinheiro não era problema, Simplício queria e podia pagar para ter segurança total. Ele queria finalmente poder dormir sossegado.

Então, nosso comerciante contratou empresas que lhe forneceram o que havia de mais moderno – e caro – em segurança. Detectores de movimento espalhados pela propriedade; cerca eletrônica infravermelha em todo o perímetro, câmeras de visão noturna que eram acionadas pela presença de qualquer coisa que se movesse. Simplício ligou tudo, deitou a cabeça no travesseiro e preparou-se para, finalmente, dormir o sono dos justos. Dentro de 5 minutos acordou com o coração quase na boca – um alarme acabou de soar! Desesperado, Simplício aciona a segurança armada 24h. Eles chegam rapidamente e não encontram nada: “senhor, isso acontece, um gato deve ter pulado o seu muro e acionou o cercamento eletrônico; é um alarme falso; pode ir dormir sossegado”. Mas agora ele estava nervoso, adrenalina circulando. Dormiu muito pouco, muito mal.

Na noite seguinte, Simplício foi novamente arrancado de seu sono com violência – um alarme de movimento havia tocado! Imediatamente ele corre para ver as câmeras de visão noturna: não era um ladrão, era um gambá. Mais um alarme falso – mais uma noite em claro.

Que droga! – pensava Simplício. Gastei um monte de dinheiro, pois queria dormir mais tranquilo. Achava que, quanto mais dispositivos de segurança eu tivesse, mais seguro eu me sentiria. E agora descubro que quanto mais alarmes eu possuo, maiores as chances de receber um alarme falso. De fato, durmo pior agora do que antes! Talvez minha chance de ser roubado esteja até um pouco menor, mas minhas preocupações – minha insônia, minha qualidade de vida – estão piores do que nunca. Nisso, simplício recebe um WhatsApp do seu filho: “Pai, meu computador estragou, e tenho que entregar um trabalho na faculdade daqui a 3 dias! Estou desesperado! Me passa um PIX para eu comprar um novo? Estou te mandando a foto do modelo, custa R$ 13.000,00 mas está na promoção por 9.900,00. Meu PIX é 123.456.789-10”. Simplício, ainda desnorteado pelos alarmes falsos e pelas noites mal dormidas, faz o PIX. Simplício acabou de ser roubado em quase 10 mil reais. E ficou com insônia.

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Assim como Simplício, gostamos de ter a ilusão da segurança absoluta. Nossa saúde é nosso maior bem e muitos estão dispostos a fazer de tudo para protegê-la. Algumas medidas básicas são, de fato, importantes: medir a pressão arterial, exames comuns para saber como anda a glicose e o perfil lipídico, são equivalentes ao muro e às trancas das portas, ou seja, nada extraordinário, com um bom custo/benefício.

Acontece que tem se tornado cada dia mais comum pacientes trazerem à consulta listas intermináveis de exames clínicos. Às vezes eu recebo PDF’s com mais de 60 páginas de exames – sessenta!. O mais incrível? A grande maioria destas pessoas sequer está doente. São apenas pessoas que estavam perdendo o sono à noite preocupadas porque poderiam ter algum problema de saúde, ou simplesmente angustiadas porque querem ter a melhor saúde possível. E agora, tal como Simplício, perdem o sono – e marcam consulta comigo e com outros – porque os vários alarmes, pelos quais elas (ou a sociedade) pagaram caro, não param de disparar

“Médico bom pede muitos exames”. Será mesmo? Não é incomum pacientes pedirem “gostaria que você me solicitasse TODOS os exames”. Obviamente isso é impossível, mas as pessoas querem que seja solicitado o maior número possível. Afinal, que mal poderia haver? Quanto mais segurança, melhor, disse Simplício – digo, o paciente.

A verdade é que um grande número de exames gera um grande número de alarmes falsos – por uma questão meramente estatística. Assim como Simplício agora perdia o sono porque um gambá passou por um de seus detectores, as pessoas chegam à consulta preocupadas porque o cromo (que nunca deveria ter sido medido) estava baixo, ou o IGF-1, ou tantos outros exames inúteis fora de contextos absurdamente específicos.

TODOS os exames têm falso-positivos e falso-negativos. O que os exames fazem não é dar certeza absoluta – assim como o disparo de um alarme não dá certeza da presença de um ladrão. Além disso, exames podem ter a chamada variabilidade analítica (uma mesma amostra de sangue pode dar resultados diferentes, pois os exames simplesmente não são exatos), e podem até mesmo estar errados. Obviamente, quanto maior o número de exames, maior a chance de ocorrerem tais desvios. Então, para que servem os exames complementares? Os exames alteram a probabilidade de uma hipótese diagnóstica.

Quando um médico faz uma anamnese de um paciente (isto é, a colheita sistemática da história clínica), isso permite levantar hipóteses antes mesmo de fazer qualquer exame. Um paciente de 50 anos, com sobrepeso, e mãe diabética, tem alta chance de ser diabético tipo 2, ou ao menos de ter resistência à insulina, gordura no fígado, e/ou síndrome metabólica (triglicerídeos altos, HDL baixo, glicose acima de 100, etc). A isso chama-se de probabilidade pré-teste.

Quando temos uma probabilidade pré-teste alta (sugerido pela anamnese), solicitamos exames que irão aumentar ou diminuir essa probabilidade. Assim, pedir 70 páginas de exames aleatórios é ERRADO porque isso não está baseado em uma formulação prévia de hipóteses diagnósticas. Quando um exame vem positivo para algo cuja probabilidade pré-teste é muito baixa, a chance maior é de tratar-se de um FALSO positivo. São os alarmes do Simplício criando insônia desnecessária.

Segue um exemplo extremo:

Um típico teste de gravidez de farmácia tem uma alta especificidade. Assim, se uma mulher sexualmente ativa tiver um atraso menstrual (alta probabilidade pré-teste de gravidez), um teste positivo aumenta MUITO a chance de estar, de fato, grávida.

Mas e se um homem fizer o teste, e o teste vier positivo? “Ah, é óbvio que é um falso-negativo!!”. Sim, mas já parou para pensar o por que é óbvio? Porque a probabilidade pré-teste de um homem estar grávido é zero. Assim, um teste positivo, que na verdade apenas aumenta a probabilidade pré-teste, não tem efeito aqui, pois qualquer coisa multiplicada por zero continua sendo zero.

Assim, quando um médico pede 70 exames aleatórios para uma pessoa com BAIXA probabilidade pré-teste de várias doenças, um exame positivo tem chance MAIOR de ser um falso-positivo do que de ser um positivo verdadeiro. Sim, poucas coisas são tão improváveis quanto um homem grávido, mas também é verdade que a maioria dos exames têm especificidade muito menor do que a de um teste de gravidez.

Este tipo de pensamento, feito em cima de probabilidades condicionais, chama-se pensamento Bayesiano. Para quem quiser saber mais, recomendo o excelente livro do Dr. José Alencar (pode ser um pouco difícil para leigos, mas vale o esforço):

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Médicos que solicitam quantidades despropositadas de exames para todo mundo devem imediatamente levantar suspeita. Primeiramente, em uma visão caridosa, desconhecem o pensamento diagnóstico Bayesiano – o que deve imediatamente levantar suspeita sobre o que mais desconhecem na medicina. Uma visão menos caridosa é a de que estão deliberadamente usando o desconhecimento de seus próprios pacientes, jogando com seus medos (assim como os fornecedores de alarmes que exploraram a boa fé de Simplício): em outras palavras, estão capitalizando em cima da noção popular de que “médico bom é o que pede muitos exames” para captar pacientes. E há, ainda, a visão cínica (mas que, infelizmente, pode, em alguns casos, ser real): estão faturando percentuais sobre os exames realizados, em acordos escusos e ilegais com laboratórios de análises clínicas.

Há quem ache que não tem problema, pois o plano de saúde paga. Na verdade, todos nós que temos plano de saúde pagamos pela irresponsabilidade destes médicos que, ao aumentar desnecessariamente os custos, aumentam a mensalidade de todos. Mas mesmo quem paga do próprio bolso, como vimos, está comprando preocupações desnecessárias embrulhadas no papel de presente da precaução. Queria conseguir apagar da memória o olhar de decepção de pessoas que adoeceram e diziam: “mas meu médico me pedia TODOS os exames 3 vezes por ano!”. Assim como na fábula de Simplício, que acabou roubado a despeito de seus alarmes, estas pessoas acabam atropeladas pela realidade de que compraram apenas uma grande ilusão de segurança.

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E, na prática, como saber se você está sendo enganado (ou está sendo atendido por alguém que sofre de auto-engano)?

Não há regra dura para isso, mas o bom senso já é um bom começo. Digamos que eu queira ter uma visão geral – básica – da saúde de uma pessoa por exames de sangue, que me dê uma ideia de função renal, função hepática, glicose, colesterol e triglicerídeos, e um hemograma. Precisaria de cerca de 10 exames de sangue – bem comuns. Para saber mais detalhes (status de vitamina B12, tireoide, ácido úrico, etc), este número subiria para cerca de 15 exames. Portanto, o bom senso já deve alertar para a possibilidade de algo esquisito frente a uma solicitação de 50 ou mais exames sem que haja um motivo específico para isso, por exemplo.

Outra regra são exames incomuns, esquisitos, raros e caros apenas para “rastreamento”. Ontem mesmo recebi exames de um paciente (solicitados por outro médico) que incluíam chumbo, mercúrio, zinco eritrocitário, arsênico, cádmio, alumínio, níquel e selênio. Veja, se uma pessoa trabalhasse em um curtume, ou em uma mina, ou em uma fábrica de baterias, ou se tivesse o hábito de chupar pilhas, isso poderia fazer algum sentido, pois haveria uma probabilidade pré-teste de intoxicação. Mas é má medicina pedir esse tipo de coisa para todo mundo. O mesmo vale para um número grande de exames esotéricos. Seja cético, desconfie.

Em uma postagem futura, falaremos sobre irmão gêmeo maligno da solicitação excessiva de exames: a prescrição excessiva de suplementos.

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