O Contrarianismo

O mundo chega até a nossa consciência primariamente através dos sentidos. A experiência imediata é a nossa primeira interface com a realidade. Eu sei que a água é quente ou fria com o toque da minha mão. Eu sei que o ambiente está iluminado ou escuro com meus próprios olhos. E eu sei se há barulho ou silêncio através da audição. Mas é preciso notar que, mesmo sobre tais experiências concretas, há incerteza: as ilusões de ótica, por exemplo, são uma excelente forma de nos darmos conta sobre como nosso cérebro não enxerga a realidade “como ela é”, e sim um modelo mental dessa realidade (modelo esse que pode ser facilmente manipulado por tais ilusões). Mas o fato é que nossos sentidos, de uma forma geral, nos dão uma excelente primeira aproximação com a realidade – e isso é uma decorrência da seleção natural: nossos antepassados que tivessem uma percepção muito distorcida da realidade não teriam deixado descendentes. Somos os descendentes daqueles que viam o mundo ao menos parecido com o que ele é

Isso tudo nos serviu muito bem em um mundo natural primitivo. Mas à medida que o conhecimento foi-se tornando mais complexo, e as ideias mais abstratas, já não temos como ter essa experiência tão concreta do mundo. Eu não tenho como “sentir” o número Pi; como enxergar o código genético ou a estrutura espacial das moléculas. O conhecimento necessário para entender tais conceitos é progressivamente mais abstrato. Certos conceitos são tão complexos e abstratos que alguns indivíduos precisam dedicar a sua vida inteira apenas estudando experimentos feitos por outras pessoas nas últimas décadas e séculos a fim de entender o suficiente sobre o assunto para tentar dar a sua contribuição àquela área de conhecimento. O que significa que, em uma sociedade complexa como a nossa, a maior parte daquilo que “sabemos” na realidade são atos de fé. Eu não tenho conhecimento em primeira mão sobre tudo o que é necessário para que um avião voe – desde o conjunto de leis da física até cada detalhe da engenharia aeronáutica envolvidas na criação de um moderno jato comercial. Eu e você só embarcamos em uma aeronave pois acreditamos em pessoas que sabem mais do que nós – que têm mais autoridade do que nós em assuntos de física, engenharia, etc. E essas pessoas não nasceram sabendo. Isso significa que acreditamos que o que se ensina no curso de engenharia aeronáutica é verdadeiro (o que nesse contexto significa estar muito próximo da realidade objetiva das coisas), que a universidade reúne muito do que há de melhor nessa área de conhecimento, e que a empresa que construiu o jato detém grande autoridade quando o assunto é projetar e construir aviões.

Carl Sagan dizia que a atitude científica precisa combinar duas ideias aparentemente antagônicas na nossa mente: grande curiosidade e abertura para novas ideias e, ao mesmo tempo, um ceticismo impiedoso. É uma combinação difícil – que precisa ser trabalhada e lapidada durante toda a vida. O predomínio excessivo de qualquer uma dessas atitudes gera graves problemas. Sagan dizia “é preciso ter a mente aberta, mas não tão aberta que seu cérebro caia pra fora” – há que ter filtro. Mas o ceticismo excessivo também é um grande problema. Como você sabe que a terra é esférica? “As fotos tiradas no espaço mostram isso”. Mas você já foi ao espaço? “Não, mas todo mundo já viu as fotos”. E como você sabe que estas fotos são verdadeiras? Percebe onde quero chegar? O ceticismo, quando levado aos extremos, destrói praticamente toda a possibilidade de adquirir conhecimentos complexos. Se você só puder conhecer aquilo com o que você tem contato direto através dos sentidos, estará restrito ao nível cognitivo de uma criança pequena.

Para simplesmente aprender o conhecimento acumulado produzido por gerações de mulheres e homens que viveram antes de nós, já levamos toda a nossa infância e adolescência nos bancos escolares. Imagina se tivéssemos que refazer todos os experimentos que levaram à compreensão das bases bioquímicas da fotossíntese, por exemplo? Precisaríamos de uma vida inteira somente para isso – mas teríamos ainda que viajar o mundo inteiro para aprender geografia, etc.: é obviamente inviável. O que fazemos é um ato de fé – uma fé institucional. A mesma fé que permite que embarquemos em um avião – a crença de que a física ensinada na universidade que formou o engenheiro que projetou o avião é suficientemente correta –  é essa mesma fé institucional que faz com que possamos aprender sobre a fotossíntese na escola sem ter que refazer todos os experimentos – nossa sociedade construiu instituições de reconhecida reputação. Quando trata-se de algo sobre o que pouco sabemos, depositamos nossa crença na chance – deveras grande – de que o saber institucional esteja mais próximo da verdade. Nem sempre será assim, mas a chance de ser é muito grande. Por isso andamos de avião sem precisar entender em detalhes como funciona – e sabemos que a terra é (aproximadamente) esférica.

O contrarianismo e as teorias de conspiração – doenças infantis do pensamento.

A expressão “contrarian”, do inglês, não tem um adjetivo equivalente em português – significa uma pessoa que é quase sempre “do contra”. Se existe um consenso, sobre qualquer coisa, o “contrarian” é contra. O contrarianismo (não creio que essa palavra exista, mas enfim) é parente próximo das teorias de conspiração. O problema com as teorias de conspiração é sua altíssima improbabilidade. Quanto mais complexas as teorias conspiratórias, mais improváveis. Sabemos que é quase impossível manter um segredo entre, digamos, 3 pessoas. Qual a chance de vários conglomerados de mídia, cada um composto por milhares de pessoas, estarem em um conluio com cientistas e governos (que também são grupos compostos por grande número de indivíduos heterogêneos) serem tão perfeitos em seus estratagemas que nada vaza? Acontece que o contrarianismo parece ser um traço de personalidade: pessoas que têm esse tipo de atitude contrária em algum aspecto da vida, não raro mantêm a mesma atitude em vários outros aspectos de seu pensamento. Há um certo grau de satisfação em acreditar que você sabe algo que os demais mortais não sabem – e isso só piorou com as redes sociais, que criam bolhas de contrarianismo que reforçam crenças bastante desviantes e bizarras.

Low-carb e contrarianismo 

Há um ditado que diz que até mesmo um relógio quebrado está certo duas vezes ao dia. A abordagem low-carb (seja para emagrecimento, seja para o manejo de doenças metabólicas) surgiu fora do cânone acadêmico tradicional – era, portanto, uma posição contrária às diretrizes. Mas low-carb está LONGE de ser a regra das posições contrárias. Eu jamais embarcaria em um avião baseado em física alternativa ou atravessaria uma ponte baseada em engenharia alternativa. Os cânones da física e da engenharia, que consistem nos conhecimentos acumulados e reunidos nas universidades e nos livros-texto, são não apenas sólidos, mas têm resultados práticos tão bons que a barra para questioná-los é muito, muito alta. Por outro lado, os resultados das estratégias alimentares tradicionais para emagrecimento e manejo de distúrbios metabólicos eram (e são) pífios. E já havia, 10 anos atrás, muitas DEZENAS de ensaios clínicos randomizados sugerindo eficácia (e muitas vezes superioridade) da abordagem low-carb. Longe de ser a regra, estávamos aqui diante de uma das mais escandalosas exceções em termos acadêmicos – a nutrição, como disse Steven Niessen uns anos atrás em um editorial, parecia ser uma zona livre de evidências – um verdadeiro fenômeno a ser estudado. Isso não significa que TODAS as diretrizes em TODAS as áreas sejam assim! Se você desconhece um assunto, você terá muito mais chance de acertar seguindo as diretrizes de universidades e instituições respeitadas do que a de uma pessoa aleatória na internet: é literalmente o que você faz quando embarca em um Boeing ou um Air Bus – você confia, e seria tolo em não confiar. Não é porque low-carb era algo contrário às diretrizes e dá certo, que tudo o que for contrário é correto. Low-carb é uma das raras exceções – é o horário exato em que o relógio quebrado do contrarianismo, por puro acaso, coincidiu com a hora certa.

A ciência se auto-corrige – é uma das poucas áreas da atividade humana que funciona assim. Às vezes demora, mas a correção acontece. Com low-carb é assim. Hoje, por exemplo, low-carb já consta como opção válida em diretrizes da Sociedade Americana de Diabetes, da Sociedade Europeia para o Estudo do Diabetes, da Diabetes UK, da Diabetes Austrália e da Diabetes Canadá. Em outras palavras, quando há muita evidência a favor de algo, a tendência é que essa coisa vá parar em diretriz – mais cedo ou mais tarde. Encontrar uma diretriz completamente em desalinho com as evidências não é impossível, mas é uma coisa RARA. Na dúvida, em áreas que você não domina, fique com as diretrizes, com as universidades de renome, com instituições de alta reputação (Boeing, AirBus), até que se prove em contrário.

O que nos traz de volta ao contrarianismo. Durante a pandemia de Covid-19, muitos autores cujo trabalho eu seguia e respeitava passaram a desposar as mais absurdas teorias de conspiração e um contrarianismo em série, compulsivo. Veja, sempre haverá entre nós um ou outro cidadão que apresenta tais tendências, mas é público e notório que, na chamada “comunidade low-carb”, há uma elevadíssima concentração de pessoas com esse tipo de postura. Talvez a que mais me choca e me preocupa dentre elas é a posição anti-vacina (ou “anti-vax”, como se costuma abreviar em inglês).

Vacinas são uma das mais incríveis invenções do intelecto humano, uma das maiores vitórias da ciência sobre a doença. A postura anti-vax sempre foi, portanto, um marcador de ignorância científica e extremismo político. Como explicar que TANTOS médicos e autores da esfera low-carb sejam anti-vax? Não tenho as respostas, mas minha principal hipótese é a de que o que os motiva é o contrarianismo compulsivo.

Me parece que são pessoas inteligentes e bem intencionadas que tropeçaram no assunto low-carb e ficaram fascinadas – como eu fiquei – com o total descompasso entre as diretrizes vigentes e a melhor evidência científica nesta área específica da nutrição – o proverbial relógio parado que estava, coincidentemente, correto naquela hora. Mas estas pessoas ficaram viciadas na sensação. Talvez tomadas de certa onipotência: “eu sou craque em descobrir situações onde todas as instituições de prestígio estão erradas e apenas eu estou certo –  sou o máximo!”. Mas só porque você comprou algumas ações que estavam baratas e ganhou muito dinheiro, isso não transforma você em Warren Buffet. Aliás, até mesmo Warren Buffet não conseguiu escolher ações que rendessem mais do que um fundo que apenas comprava as ações do S&P500 indiscriminadamente.

Isso me leva à triste conclusão de que muitos médicos e autores que praticam e publicam sobre low-carb chegaram à abordagem low-carb pelos motivos errados. São contrarians por natureza, e gostam da abordagem essencialmente por ela estar fora das diretrizes. Estão fazendo a coisa certa por motivos errados. Apostam em TUDO que é contra o “establishment” – no caso da low-carb, como no caso do relógio parado, acertaram. Mas estarão delirantemente errados em quase todo o resto por uma questão meramente estatística – a maioria do conhecimento endossado por instituições de reconhecido renome tem uma chance muito maior de estar mais correta do que opiniões aleatórias. E, se alguém quiser questionar tais conhecimentos, deverá ser alguém com competência na área, conduzindo e publicando estudos peer reviewed. Não você, formado em direito por exemplo, achando que sabe mais sobre epidemiologia, infectologia ou microbiologia do que especialistas que dedicam suas vidas ao estudo de um assunto. Nem você, médico, que trabalha em seu consultório – ser médico não o torna expert em ciência.

Mea culpa

Passei os últimos 10 anos divulgando estudos científicos de alto nível (ensaios clínicos randomizados, metanálises) que embasavam a estratégia low-carb. Como no caso específico da estratégia low-carb havia, sem dúvida, um insólito e incomum descompasso entre as evidências e o consenso, eu combati o consenso – com força. Acabei dando, sem querer, munição a milhares de “contrarians”. Gente anti-vacina e pró-cloroquina que, quando confrontados com o consenso institucional, dão o exemplo da nutrição: “diretrizes também erram, vejam o caso da low-carb”. Isso é uma falácia lógica – você usa a exceção e a generaliza. Não é porque um governo é péssimo que “governos são todos péssimos”; não é porque alguém de determinada etnia é ladrão que toda aquela etnia é composta por ladrões. 

Em março, no ápice da tragédia brasileira do Covid-19, fiz uma série de lives no Instagram com especialistas em práticas de saúde baseadas em evidência, para ajudar a desmistificar cloroquinas, ivermectinas e posturas anti-vacina – pois a pandemia abriu uma assustadora caixa de Pandora (escrevi sobre isso aqui). Em uma destas lives, perguntei ao Dr. José Alencar, autor do excelente livro “Manual de Medicina Baseada em Evidências”, como a pessoa comum poderia fazer para discernir o que era um estudo de boa qualidade (prospectivo, randomizado, revisado pelos pares, publicado em periódico de prestígio, e com boa metodologia) versus estes pré-prints de péssima qualidade que estavam sendo trocados em grupos de WhatsApp negacionistas. A resposta do Dr. Alencar foi simples, direta, e acabou sendo a semente que levou à presente postagem: “as pessoas devem buscar fontes com prestígio reconhecido em análise de evidências, tais como o biblioteca Cochrane ou o UpToDate”. Afinal, explicava ele, não é razoável supor que a maioria dos profissionais de saúde terá a expertise para avaliar com a devida profundidade a qualidade das evidências. Que dirá então as pessoas que são completamente fora da área.

Alguém diria “mas esta postura é de um conformismo inaceitável!”. Se todos fossem agir desta forma, Einstein não teria suplantado a física newtoniana, e a mecânica quântica jamais teria sido aceita. A verdade é diferente por dois motivos: primeiramente, você não é um Einstein ou um Schrodinger, você mal consegue calcular seu imposto de renda. Para fazer contribuições que realmente mudam o mundo, é necessário um grau de conhecimento que você não adquire no Twitter. Em segundo lugar, tais mudanças de paradigma efetivamente ocorreram, o que mostra que o sistema resiste à mudança, mas que a verdade (sempre provisória) acaba por prevalecer. Assim como está acontecendo com a low-carb, que já se incorporou às diretrizes de diabetes da maior parte do mundo.

Redes sociais, polarização e bolhas

Vivemos em um mundo diferente daquele no qual crescemos. As redes sociais levam à polarização extrema, gerando bolhas. Na sua bolha, você lê artigos e assiste vídeos exclusivamente com o viés daquele grupo. Quando eu era criança, chamava-se isso de “lavagem cerebral”. Veja, o contrarianismo sempre existiu. Mas, no passado, o “contrarian” era um indivíduo exótico – alguém interessante que você encontrava numa festa. Eram, porém, raros. Digamos que uma em cada 100 pessoas fosse um anti-vaxer. Hoje, porém, os “contrarians” juntam-se em um grupo de Telegram, ou passam todos a seguir uma mesma conta de Instagram ou Twitter. Se você, uma pessoa normal, entra em um grupo desses, você é que se vê como o exótico, o diferente. Em um grupo de milhares de pessoas que têm ideias semelhantes às suas (sobre low-carb, por exemplo), mas na qual quase todos são anti-vax, você passa a ser anti-vax também pois, “afinal, todo mundo é” (e esse é o desastroso efeito polarizante das redes – a sua bolha passa a ser o seu universo, e você passa a questionar o seu próprio bom senso). Some-se a isso um presidente da república caricato – aquele sujeito “exótico” da festa –  e a receita da pólvora está pronta.

“Pós-verdade”

A consequência nefasta é o surgimento daquilo que passou a se chamar de “pós-verdade”. Digamos que tenha havido um incêndio em um prédio na sua rua, ontem à noite. Você viu o incêndio, você sabe a verdade. Mas 99% das pessoas em uma cidade grande não terão visto o incêndio em primeira mão – elas lerão no jornal sobre ele. É uma informação obtida de segunda mão. O motivo pelo qual elas acreditam, ao ler o jornal, que tal incêndio de fato ocorreu, é exclusivamente pela fé que elas depositam nesse veículo de imprensa. E, lembrando o início dessa postagem, quase tudo o que sabemos e conhecemos sobre o mundo também o sabemos assim – de segunda mão, pela fé que depositamos nas universidades, na imprensa, e em instituições. O dispositivo eletrônico no qual você está lendo este texto só foi possível porque todas as informações acumuladas por décadas sobre microchips, LEDs e baterias, informações essas que foram publicadas em periódicos e ensinadas em universidades, estavam corretas (vale dizer – suficientemente próximas da verdade física a ponto de permitirem que o dispositivo funcione como planejado). Quem criou o seu dispositivo não foi a mesma pessoa que descobriu os semicondutores – ele teve de acreditar naquilo que outros descobriram e descreveram. Na construção da nossa civilização, há uma longa e interminável cadeia de conhecimento que depende da fé que depositamos em informações acumuladas por instituições. Como podemos saber que tudo isso não é uma grande ilusão? Porque o smartphone/tablet que você está usando funciona. Existe uma verdade que não é completamente subjetiva. Mas as redes sociais geraram um mundo edrúxulo no qual cada um tem a “SUA verdade”. No exemplo acima, você, que mora longe, passa a “saber” que houve um incêndio por depositar confiança em instituições que tenham compromisso com a verdade. Há inclusive um termo para isso – chama-se “fé pública”. A sua casa só é sua, e não pode ser tomada por ninguém, porque há uma escritura pública na qual consta isso – em uma instituição – o cartório – que detém “fé pública”. Nossa sociedade inteira é baseada nisso! Por isso damos (ou deveríamos) dar mais valor à notícia do jornal, no qual os fatos foram apurados por jornalistas profissionais, do que no Zap do seu tio. Sim, seu tio pode estar certo e o jornal errado – mas há que pesar as probabilidades à priori. Uma pessoa racional deveria ser mais cética em relação ao seu tio do que ao jornal, pelo mesmo motivo que quando eu disser que o real proprietário do seu apartamento sou eu e não você, você recorrerá ao registro de imóveis e será cético (com razão) sobre as minhas alegações. A “minha verdade” não vale tanto quanto a do cartório (ou a do jornal).

Mas a imprensa por vezes erra! Sim, seu tio do Zap também erra. E, não obstante, você segue preferindo embarcar na aeronave produzida por gente que frequentou universidades de renome, e não em uma projetada pelo tio. O mesmo critério deveria ser utilizado para saber se Donald Trump realmente perdeu as eleições (o Washington Post ou o New York Times são mais confiáveis do que os grupos de Telegram do Qanon) ou se Cloroquina funciona para Covid-19 (a Sociedade Brasileira de Infectologia é mais confiável do que seu grupo de WhatsApp da família).

Em seu excelente livro Sapiens, o historiador Yuval Harari explica que nosso grande sucesso como espécie depende de nossa capacidade de acreditar em histórias compartilhadas. Um país é uma história compartilhada. O dinheiro também – um chimpanzé não trocaria jamais uma banana por uma nota de 100 reais – seria tolice trocar algo valioso por um ridículo pedaço de papel. O dinheiro só tem valor porque nós todos acreditamos na mesma história compartilhada. Mas a mesma característica que nos trouxe até aqui pode vir a ser o nosso fim, se passarmos a acreditar em diversas histórias bizarras que são compartilhadas apenas por indivíduos da nossa bolha. E, diferentemente do dinheiro, que é uma coisa completamente abstrata, acreditar que vacinas fazem mal ou que cloroquina cura covid-19 são crenças que se chocam com a própria realidade. Mas como eu vou saber a realidade? Como no caso do incêndio acima, que 99% das pessoas souberam através do jornal (depositaram sua fé na veracidade da apuração feita por um veículo profissional e reconhecido), nossa escapatória do caos passa pela restauração da fé em instituições de prestígio. Não se trata de fé cega! Trata-se apenas de reconhecer que, a fim de desafiar um consenso, é necessário muita evidência de alto nível (como aconteceu com o caso da low-carb), e não de gritaria. Sua argumentação precisa ser boa o suficiente a ponto de poder modificar o consenso. Para isso, são necessários mais do que pré-prints e tweets. Mais uma vez, como dizia Carl Sagan: “alegações extraordinárias requerem evidências extraordinárias”.

Mas então o que fazer? Simplesmente acreditar em tudo o que a mídia e as instituições dizem?

Não há solução perfeita para o dilema que opõe crença cega nas instituições versus o anarquismo intelectual da pós-verdade. Sempre vamos errar. A questão é: como poderemos fazer para errar menos. Primeiramente, é necessário dizer novamente – nutrição e alimentação são exceções. Por motivos que são melhor explicados pela história do que pela ciência, esta área em especial costuma ser apresentada, mesmo na mídia séria e profissional, com a repetição eterna da seguinte mistura: senso comum (“coma tudo com moderação”), elogio aos grãos integrais e condenação à carne vermelha. Comer biscoito recheado com moderação é contraproducente, grãos integrais elevam a glicemia de um diabético tanto quanto açúcar e uma dieta low-carb à base de carne vermelha (poderia ser qualquer carne) é capaz de colocar esta mesma diabetes em remissão, e tudo isso está claramente demonstrado com alto nível de evidência. A situação peculiar da nutrição poderia, com certeza, ser motivo de estudos sociológicos sobre como uma área da ciência institucionalizada consegue ficar virtualmente impermeável ao avanço do conhecimento – mas o interesse seria justamente na EXCEÇÃO representada por esse estranho fenômeno, comparativamente ao que se vê no restante da ciência. Eu costumo dar como exemplo o que ocorre na oncologia: um tratamento que era feito há muitos anos pode mudar depois de um único ensaio clínico randomizado mostrando que uma nova combinação de drogas é mais eficaz. Ao contrário do que acontece com a nutrição (na qual dezenas de ensaios clínicos e várias metanálises são ignorados como se isso fosse uma coisa normal). isso não é a regra no restante das ciências como um todo. Quando as diretrizes afirmam (sem nenhuma evidência) que a gordura saturada da dieta deve ser mantida abaixo de 7%, tal equívoco não faz com que as diretrizes aeronáuticas passem a ser igualmente relapsas (os aviões não começam subitamente a cair). Não se deve jogar o bebê (todas as diretrizes científicas e todas as instituições de prestígio) fora junto com a água suja do banho (diretrizes nutricionais).

Se você é um contrarian e leu até aqui, é provável que sua posição não vá mudar em nada – obviamente. Mas, para você que me acompanha e está confuso pois outras pessoas da esfera low-carb estão defendendo coisas francamente lunáticas, seguem algumas sugestões (fora da área de nutrição):

  1. Na dúvida, comece pelas instituições de maior prestígio. Se você não sabe nada sobre neurologia, terá mais chance de acertar informado-se no site da Sociedade de Neurologia do que no Instagram de alguém que fala de “consciência quântica”.
  2. Se alguém falar em qualquer coisa “quântica” (que não seja física), fuja. Se for sobre física quântica e você achar que entendeu, está errado também.
  3. Há marcadores de quem você deve manter distância: ser anti-vacina, por exemplo, é um clássico. Sim, eu sei que é uma heurística tosca, mas funciona muito bem.
  4. Outro marcador clássico são teorias de conspiração: se começar com “a verdade que ELES não querem que você saiba”, fuja. Mesmo que exista uma conspiração real, quem estiver escrevendo sobre isso deverá gastar metade do texto explicando por que, embora pareça uma teoria de conspiração, naquele caso não é – e é bom que haja muita evidência de alto nível, pois “alegações extraordinárias requerem evidências extraordinárias”. Na prática, teorias de conspiração são sinal de contrarianismo psicótico (ou de mau caratismo mesmo, se o objetivo for vender coisas para pessoas crédulas).
  5. Cuidado com termos como “longevidade saudável” que, na prática, se traduzem em receitas de vários hormônios (para pessoas sem deficiência) bem como suplementos contendo metade da tabela periódica.
  6. Por fim, fuja de pessoas que empregam falsas dicotomias. Exemplo: “ao invés de se vacinar ou usar máscaras, as pessoas deveriam comer de forma saudável e pegar mais sol”. Obviamente, as pessoas deveriam fazer tudo isso, pois uma coisa não exclui a outra. 

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