** Esta é uma postagem desatualizada. A versão atualizada encontra-se na Área de Membros **
A maioria das postagens desse blog são cheias de referências bibliográficas. Isso ocorre por necessidade, seja para embasar ideias que não se coadunam com o senso comum, seja como indicativo de que as afirmações não são mera opinião.
Não é o caso da postagem atual. Admito livremente que o que se segue é minha opinião, baseada em uma síntese livre da literatura com minha experiência clínica e pessoal.
Não vou aqui ocupar espaço discutindo sobre as percepções errôneas do papel da gordura na doença cardiovascular. Há literalmente dúzias de postagens sobre isso no blog e – mais importante – há um livro maravilhoso sobre o assunto:
Dependendo de quando você estiver lendo essa postagem, existe a possibilidade de assistir a autora desse livro AO VIVO em São Paulo, dias 14 e 15 de julho, no 1o Congresso Internacional Low-Carb. NÃO PERCA.
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A eficácia da abordagem low-carb para emagrecimento é, à primeira vista, contraintuitiva. Afinal, emagrecer significa perder gordura corporal. Uma dieta low-carb é uma dieta mais rica em gordura do que uma dieta ocidental padrão. E as pessoas então se perguntam: que sentido faz consumir mais gordura com o objetivo de perder gordura? Vamos combinar: é contraintuitivo.
O primeiro passo é evitar o erro contumaz da nutrição: basear-se em mecanismos/lógica ANTES de verificar o que, de fato, acontece no mundo real. O que ocorre quando dietas low-carb são comparadas (em humanos) com dietas de baixa gordura com fins de perda de peso?
Focando apenas nos resultados em azul, acima (resultados com significância estatística), vemos que low-carb é superior a low-fat em TODOS os estudos. Pode-se argumentar quanto à magnitude das diferenças, mas é inegável que dietas com mais gordura, DESDE QUE com baixo carboidrato, não estão associadas ao ganho de peso – pelo contrário. Como já escrevi aqui no blog, a realidade tem primazia sobre os mecanismos que postulamos. Cabe explicar COMO acontece, e não negar a realidade.
No entanto, a gordura que consumimos precisa ir para algum lugar, não é mesmo? Ela tem calorias, certo? Não seria melhora evitar ao máximo a gordura, se quero perder gordura? Então, a pergunta posta é: qual o benefício de consumir gordura na dieta quando se visa emagrecimento, e a partir de que momento essa estratégia pode tornar-se contraproducente?
Você já se perguntou para onde vai a gordura que você perde? Imagine que você emagreceu 10 Kg com low-carb (ou passando fome, tanto faz). De que forma esses 10 Kg de gordura saíram de dentro de você? Sim, porque não foi por teletransporte! Há quem fantasie que saia nas fezes, ou na urina. Há, com certeza, muita gente iludida nas academias pensando que sai pelo suor (quem nunca viu alguma pobre alma fazendo exercício no verão, com manga comprida, sofrendo inutilmente?). A verdade é que você elimina a gordura pelos pulmões. Sim! O CO2 (gás carbônico) que você expira, é oriundo dos carbonos da glicose e dos ácidos graxos (gorduras) que suas células “queimam” (oxidam) nas mitocôndrias. Difícil de acreditar que 10 Kg de banha possam sair pelo seu nariz? Pense em quão pesado é um saco de lenha, e pense para onde vai todo esse peso depois que você queima a lenha na lareira. Desapareceu do universo? Não. A queima (oxidação) da madeira (que é glicose – sim, porque madeira = celulose = glicose) produziu CO2. Aqueles vários quilos de lenha (com exceção das cinzas) agora habitam a nossa atmosfera na forma de gás carbônico.
Em outras palavras: seu primeiro objetivo é aumentar a oxidação de gordura nas suas células. Essa é a única forma da gordura sair do seu corpo. Tradicionalmente, as pessoas fazem isso passando fome. Em low-carb, a relativa escassez de glicose faz com que o corpo oxide preferencialmente gordura. Se você pertence ao grupo das pessoas que considera a fome algo desagradável, é uma opção bem atraente.
Mas QUAL gordura o corpo irá oxidar? A gordura armazenada no tecido adiposo, ou a gordura presente na comida? A resposta é AMBAS. Assim, por óbvio, quanto MAIS gordura houver na dieta, MENOS gordura corporal será oxidada (eliminada).
E esse é o momento em que muita gente irá colocar as mãos na cabeça e gritar “não entendo mais nada!!”. Afinal, low-carb não é uma dieta com mais gordura? O acrônimo em inglês LCHF não significa justamente Low-Carb High-Fat (baixo carboidrato, alta gordura)?
Como se diz em inglês, there can be too much of a good thing, ou seja, até mesmo uma coisa boa pode deixar de ser boa, quando em excesso. Vamos elaborar essa ideia no que concerne à gordura na dieta em uma alimentação low-carb.
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Há algumas coisas que são realmente tóxicas, para as quais o gráfico de dose-resposta é uma curva ou reta ascendente. Chumbo ou mercúrio (metais pesados) na sua comida, por exemplo, são sempre ruins. Não há benefício. Quanto mais chumbo, pior:
Gráfico 1 – resposta teórica do organismo às substâncias tóxicas. Quanto menor a exposição a essas substâncias, melhor. |
Existe uma série de coisas que são benéficas ao organismo. Ao contrário do que se vê com os venenos, o benefício costuma seguir uma curva em U invertido, ou seja, é ruim ter pouco, mas também é ruim ter demais – há um ponto ideal, um sweet spot.
Gráfico 2 – resposta teórica do organismo às exposições benéficas – é ruim ter pouco, mas também é ruim ter demais. |
Há uma série se situações que seguem esse padrão em biologia. A exposição solar é uma delas. A ausência de exposição solar é sabidamente deletéria. À medida que aumentamos a exposição solar, ganham-se benefícios. E há malefícios associados ao excesso de exposição solar, como todos sabem. Até mesmo água e oxigênio seguem essa curva. Não é diferente com a gordura na dieta.
Ao contrário do que imagina o senso comum (e alguns profissionais que não baseiam suas condutas em evidência científica – ler o livro indicado acima), a gordura não é algo tóxico ou ruim na dieta, como o chumbo ou o mercúrio. Somente nesse caso faria sentido minimizar seu consumo, como se vê no gráfico 1. A gordura na dieta segue o padrão do gráfico 2.
Por que muito pouca gordura na dieta é ruim?
Porque a gordura fornece dois elementos-chave no sucesso de uma estratégia alimentar: palatabilidade e saciedade.
Como todos sabem, o mais difícil não é emagrecer com dieta, e sim manter a perda de peso no médio e longo prazo. E por que isso ocorre? Porque não é realista que alguém consiga manter, no longo prazo, o sofrimento imposto pela fome, aliado à falta de prazer fornecido pela palatabilidade, isto é, poder comer coisas gostosas. A gordura ajuda a resolver ambos problemas. Todo mundo sabe que alimentos com mais gordura são mais saciantes. Precisamos comer menos para matar a fome, e ficamos mais tempo sem fome quando comemos um alimento mais rico em gordura. O que é mais gostoso? Um frango assado com pele, ou um peito de frango seco? E o que mata mais a fome?
Neste momento, é importante esclarecer uma coisa. A gordura da pele do frango irá, SIM, competir com a SUA gordura para ser oxidada nas mitocôndrias. Em outras palavras, consumir um pouco mais de gordura na dieta significa, a rigor, “queimar” (oxidar) um pouco menos da sua própria gordura. Para deixar AINDA MAIS claro: SE fome e prazer não existissem, a estratégia ideal para o emagrecimento seria uma uma dieta de baixo carboidrato, baixa gordura, baixa caloria e alta proteína. Vejamos: baixo carboidrato (low-carb) força o corpo a usar gordura como fonte de energia; baixa gordura força o corpo a usar a gordura corporal (e não a da comida) como fonte de energia; alta proteína preserva a massa magra, e o déficit calórico é condição necessária para qualquer emagrecimento.
No entanto, NINGUÉM consegue manter essa estratégia no médio ou longo prazo. Isso é uma INTERVENÇÃO, não um estilo de vida. Isso é praticamente um transtorno alimentar. É o tipo de coisa adotada, por curto espaço de tempo, por modelos fotográficos e por atletas que competem em categoria de peso. O fato de que a fome existe e é desagradável, e de que uma vida sem prazer não é o objetivo da maioria das pessoas é o que faz com que a restrição de gordura na dieta (sobretudo em uma dieta low-carb) seja prejudicial. É o que ajuda a explicar os inúmeros estudos nos quais o grupo low-carb, mesmo liberado para comer à vontade (ad libitum), acaba comendo menos e emagrecendo mais (saciedade e palatabilidade).
Então, por que não aumentar ainda mais a gordura da dieta? Se um pouco de gordura deixa tudo mais gostoso, um monte de gordura poderia deixar ainda melhor, não é mesmo? Além do que, uma alimentação bem gordurosa sem dúvida é saciante – até mesmo nauseante – de modo que não comeremos muito. Bem, além dos problemas relacionados à dislipidemia (sobre os quais já escrevi aqui), há um pequeno detalhe – à medida em que aumentamos a quantidade de gordura oriunda da dieta, passamos a oxidar cada vez MENOS gordura do próprio corpo. Quando, mesmo no contexto de uma dieta low-carb, a quantidade de gordura ingerida se equipara à quantidade de calorias necessárias para manter o funcionamento do organismo, simplesmente não se perde peso algum. E é possível (embora não seja comum) GANHAR peso em low-carb, devido ao excesso de gordura na dieta.
Isso é muito importante, de modo que, sob risco de ser redundante, cabe novamente salientar: a ÚNICA função da gordura na dieta, no contexto de uma dieta low-carb, é fornecer saciedade e palatabilidade. Mas, como esta gordura estará competindo com a SUA gordura pela vaga nas suas mitocôndrias, você deverá buscar a quantidade mínima necessária para produzir essas condições: nem tão pouco que você fique com fome, nem tanto que você não obtenha resultados.
Nesse momento, também é interessante lembrar que uma dieta cetogênica não é necessária para perda de peso, e que cetose sequer garante perda de peso. Já escrevi sobre isso – leia aqui. Dieta cetogênica é uma estratégia terapêutica para epilepsia, com resultados promissores para algumas outras condições. Mas uma dieta cetogênica requer, de fato, quantidades proporcionalmente grandes de gordura – 70 a 90% das calorias – o que pode ser útil para produzir corpos cetônicos para tratar epilepsia refratária, mas pode ser contraproducente tanto para emagrecimento quanto para o perfil lipídico de alguns indivíduos. Se você faz cetogênica, sente-se bem, e obteve boa composição corporal sem dislipidemia, ótimo, continue fazendo o que está dando certo! Caso contrário, continue lendo essa postagem.
O Dr. Ted Naiman, médico americano que sigo no twitter (@tednaiman), tem uma capacidade incrível de resumir conhecimento científico sobre low-carb em memes. Um deles é especialmente relevante para nossa discussão atual:
Ou seja, “dica de LCHF (Low-Carb, High-Fat, baixo carboidrato e alta gordura): Se seu corpo já é HF (já tem alta gordura), então tudo que você precisa é de LC (low-carb)“.
E este é o motivo pelo qual toda a blogosfera low-carb internacional tem mudado a tradução de LCHF de “low-carb, high-fat” para “low-carb, Healthy Fat”, ou seja, low-carb com gorduras saudáveis. Não porque gordura faça mal para a saúde, e sim porque as pessoas não se deram conta de que a gordura, como qualquer coisa benéfica em biologia, segue uma curva em “U”.
Gráfico 3 – A curva em “U” invertido da gordura na dieta – talvez você esteja exagerando. Não é “só porque pode” que significa que “deva”. |
Albert Einstein teria dito “everything should be made as simple as possible, but not simpler” (devemos simplificar as coisas o máximo possível, mas não mais do que isso). Infelizmente, o gráfico acima é uma simplificação excessiva. Afinal, a quantidade de gordura que é possível consumir na dieta antes que o benefício comece a decrescer é altamente variável. Algumas pessoas consomem diariamente o “bulletproof coffee” sem nenhum problema, enquanto outros precisam cuidar os laticínios gordos e focar-se mais em proteínas magras para atingir os objetivos de composição corporal ou de melhora do perfil lipídico.
Isso significa que a pergunta “quantos gramas de gordura” ou “quanto por cento de gordura” devo/posso consumir não tem uma resposta numérica específica. Depende do seu objetivo e da resposta específica de seu organismo. Está apenas mantendo peso numa dieta low-carb? Pode consumir mais gordura. Colesterol subiu para 400? Reduza a quantidade de gordura e modifique os tipos de gordura consumidos (leia aqui). Está consumindo bastante gordura em low-carb, mas segue perdendo peso e seus exames estão bons? Ótimo, em time que está ganhando não se mexe! Agora, se você está seguindo um estilo de vida low-carb e não consegue perder peso e/ou está dislipidêmico, talvez você esteja muito à direita do gráfico 3, acima. Neste caso, reavalie/repense/ reduza. Um nutricionista com experiência em low-carb pode ser muito útil para lhe orientar nessa correção.
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Os estudos científicos estudam GRUPOS de indivíduos, e relatam o resultado MÉDIO obtido por cada grupo. Porém, a variabilidade individual é muito grande. Isso já foi abordado em uma postagem específica (veja aqui).
Um exemplo interessante é o do recente estudo DIETFITS, no qual duas dietas pobres em alimentos processados e sem açúcar, uma um pouco mais low-carb, e outra um poco mais low-fat, foram comparadas. É interessante notar que houve pessoas que responderam bem e pessoas que responderam mal em AMBOS grupos:
É sabido que esse estudo tem limitações (o grupo low-carb não era realmente low-carb), mas o fato é que existe outra explicação. A gordura da dieta pode não ter o mesmo efeito inibidor do apetite em todas as pessoas. Talvez tenha esse efeito para a MÉDIA das pessoas, mas isso não interessa se você come bastante gordura, o que inibe a oxidação da SUA própria gordura, e se o SEU apetite continua desinibido, de modo que a invés de comer MENOS, você come MAIS. Talvez você seja como essa minoria do gráfico acima, que não perde peso – ou até engorda! – em low-carb. Nesse caso, uma dieta low-carb com proteínas magras, ou até mesmo uma low-fat/low-crap seja o ideal para você. Mais uma vez, um profissional de saúde poderá lhe ajudar nesse sentido.
O foco de uma dieta low-carb deve ser na qualidade dos alimentos e na densidade nutricional. A gordura da dieta serve apenas para dar sabor e saciedade. Se você já é high fat, então a sua dieta precisa apenas de low-carb. Ajuste a quantidade de gordura com sabedoria.
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Observação final: uma dieta low-carb sempre será high-fat quando comparada à dieta low-fat promovida nos últimos 40 anos. O que pode ser contraproducente é a versão “só como torresmo / bacon / café com manteiga e costela gorda” que prolifera nas redes sociais.