“Os besouros não deveriam conseguir voar – é matematicamente impossível. E, não obstante, eles voam!”
Por que será que todas as melhores histórias são lendas? Esta, infelizmente, é mais uma delas. Nenhum cientista de verdade diz essa bobagem, e esse tipo de asneira só dá cria nas redes sociais, essa espécie de ágar-ágar da estupidez humana. Mas, enquanto lenda urbana, nos serve de argumento.
Parece que, efetivamente, houve um livro de entomologia de 1934 chamado Le vol des insectes (“O voo dos insetos”), de Antoine Magnan, no qual o autor de fato relatou que, segundo seu amigo e matemático André Sainte-Laguë, as asas tinham uma superfície muito pequena para fornecer sustentação aos insetos, dados sua superfície, volume, peso e velocidade.
Suponhamos que você seja Antoine Magnan, o entomologista. Há 20 anos você estuda e cataloga insetos. Você consegue identificar diferentes espécies, na natureza, apenas pela forma como voam, de modo que seu voo é, para você, uma realidade cotidiana. De repente, você recebe uma carta (estamos nos anos 1930, afinal). Dentro dela, seu amigo e matemático André Sainte-Laguë afirma, após umas 3 folhas de cálculos inescrutáveis, que o voo dos insetos é IMPOSSÍVEL. As leis da aerodinâmica provam isso.
E então, o que acontecerá a seguir?
- Você, juntamente com o Universo, dá-se conta subitamente que o voo dos insetos é impossível e, como num passe de mágica, todos os insetos voadores caem do céu, e passam a caminhar, como se formigas fossem.
- Você sabe que os insetos voam. Aliás, todo mundo sabe, inclusive seu amigo André, que de parvo não tem nada. Ou seja, sabendo-se que os insetos voam, você e André sabem que os cálculos estão errados, ou incompletos, ou baseiam-se em modelos inválidos para essa situação específica.
A opção 1 significaria colocar os mecanismos acima da realidade; a opção 2 é a admissão de que a realidade tem primazia sobre os mecanismos. Afinal, o fato é que eles voam.
Mas isso nem sempre foi assim. Durante a idade média, os mecanismos tinham prioridade sobre a realidade. Se você queria saber algo sobre a realidade, você não fazia experimentos, você consultava a opinião dos sábios do passado. E o maior deles era Aristóteles. Aristóteles acreditava que uma pedra de 2 quilos cairia 2 vezes mais rápido do que uma pedra de um quilo. Afinal, ela pesava duas vezes mais – faz todo o sentido, não é mesmo? Apenas um tolo duvidaria desta verdade auto-evidente, matematicamente demonstrável.
Aristóteles, assim como muitos filósofos gregos, acreditava que a filosofia, o pensamento abstrato em si, era a melhor forma de construir o conhecimento. Nunca ocorreu a ele TESTAR a sua hipótese, lançando duas pedras de peso diferente para ver o que ocorria. No pensamento aristotélico, a coerência interna, a lógica – que era o equivalente da álgebra no mundo das ideias – e a beleza de uma teoria bastavam. Sujar as mãos com pedras era uma espécie de rebaixamento intelectual.
Eis que, por 2 mil anos, as mentes curiosas do mundo civilizado que indagassem sobre a queda de corpos de diferentes massas receberam a mesma resposta: quanto mais pesado o corpo, mais rápida a sua queda. Aristóteles explicou o mecanismo. Portanto, tem de ser assim.
Existe um motivo pelo qual este período é conhecido como idade das trevas.
Então, veio Galileu Galilei. Galileu acreditava que corpos de diferentes massas cairiam com a mesma velocidade, pois sofreriam a mesma ACELERAÇÃO.
A seguir, reproduzo um fragmento da wikipedia:
“Dois mil anos antes, o filósofo grego Aristóteles tinha afirmado que uma pedra de 2 quilos cairia duas vezes mais depressa que uma pedra de um quilo. Os outros professores da Universidade de Pisa, onde Galileu lecionava, mantinham que como Aristóteles era sábio e bom, ninguém devia duvidar dos seus ensinamentos.
Galileu insistiu calorosamente em que os homens deveriam acreditar no que viam. Segundo reza a lenda, Galileu teria convencido os professores a acompanhar suas experiências, levando-os à torre inclinada de Pisa, local em que deixou cair uma grande pedra junto com outra pequena do balcão mais alto da torre.
Elas chegaram juntas ao solo “o seu impacto soou como o toque de finados da autoridade pela fama, em Física”. Desde então nós aprendemos a nos apoiar cada vez mais na experiência e a fazer experiências para descobrir a verdade. A experiência de Galileu marca o nascimento da Física moderna.”
Como você sabe, a história não terminou assim. Galileu foi condenado pela Igreja por heresia, e só não foi queimado na estaca porque renegou suas ideias, tendo assim recebido o benefício da prisão domiciliar. Só em 2000 o papa João Paulo II perdoou Galileu. A Igreja definitivamente tem um pendor por mecanismos em detrimento da realidade.
E então, o fato de Aristóteles ter postulado que uma pedra de 2 quilos cairia duas vezes mais rápido do que a de um quilo, faz com que caiam? É claro que não. A realidade tem primazia sobre os mecanismos. E é por isso que, no vídeo abaixo, de 1971, o astronauta da Apollo 15 presta homenagem citando o nome de Galileu, quando prova que uma pluma e um martelo caem à mesma velocidade na lua (onde não há resistência do ar), e não o nome de Aristóteles. Se o homem chegou à lua, e se você está lendo essas linhas em um dispositivo eletrônico, foi por causa do legado de gente como Galileu, que compreendeu que a realidade tem primazia sobre os mecanismos.
Isso significa que mecanismos não têm nenhuma importância? Não, claro que são importantes. O que precisa ficar claro é que mecanismos não determinam a realidade. Mecanismos são postulados teóricos que ajudam a explicar uma dada realidade e a postular hipóteses. Mas a realidade terá SEMPRE a última palavra. Se uma hipótese, amparada em um mecanismo qualquer, produzir resultados diversos do que se observa no mundo real, não é o mundo real que está errado! Os insetos continuarão a voar, é você que precisa rever seus postulados para encontrar onde está o erro.
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Por que escrevi sobre tudo isso em um blog de ciência low carb? Porque todos os dias recebo emails angustiados de leitores que receberam um artigo científico dizendo que low carb é ruim baseado em algum MECANISMO de ciência básica.
Exemplo 1:
- Esse estudo mostra que uma dieta de alta gordura produz obesidade e resistência à insulina em roedores;
- Esse estudo (ensaio clínico randomizado) mostra que uma dieta de baixo carboidrato e alta gordura produz perda de peso e melhora da resistência à insulina em humanos;
E então? Um novo estudo que mostre que uma dieta rica em gorduras produz ganho de peso em roedores fará com que a realidade se curve? As pessoas que perderam 20 Kg com low carb acordarão hoje 20 Kg mais gordas? É claro que não! O fato de que isso acontece em roedores, mas não em humanos, faz com que os pesquisadores devam pesquisar as diferenças metabólicas entre roedores e humanos. Pois a realidade tem primazia sobre os mecanismos. Os insetos continuam voando, as pedras continuam caindo à mesma velocidade, e as pessoas continuam perdendo gordura com low carb.
Exemplo 2:
- Esse estudo sugere que gordura na dieta causa alterações adversas no microbioma intestinal, produzindo inflamação;
- Esse estudo, uma metanálise de ensaios clínicos randomizados em humanos, mostra que low carb produz redução dos níveis de proteína C reativa (um marcador de inflamação);
No exemplo 2, são dois os problemas. O primeiro é o fato de que, em humanos, sem avaliar o microbioma e apenas medindo um marcador de inflamação, low carb está associado com redução dos níveis de inflamação. Como há incontáveis mecanismos de inflamação, não sabemos quais os mais importantes, mas a REALIDADE nos informa que, ao fim e ao cabo, independentemente de por qual mecanismo, low carb produz melhora.
Mas o segundo problema é o mais grave: estamos, nesse caso, discutindo um desfecho substituto.
Isso já foi discutido em outra postagem, mas segue um resumo:
- Desfecho concreto é o que realmente interessa: morte, derrames, amputação.
- Desfecho substituto são coisas que você IMAGINA que irão afetar a sua CHANCE de ter um evento concreto: níveis de colesterol, ativação da proteína m-TOR, alterações no microbioma intestinal.
O que realmente importa são estudos (preferencialmente ensaios clínicos randomizados) com desfecho CONCRETO. E sempre que um ensaio clínico com desfecho concreto mostrar algo diferente do que um estudo com desfecho substituto (ou seja, com desfecho focado em mecanismos), o que vale é o DESFECHO CONCRETO. Por quê? Porque a realidade tem primazia sobre os mecanismos. O que importa é que o insetos voam, que as pedras caem, que as pessoas emagrecem e revertem sua síndrome metabólica.
Assim, o que importa não é síntese proteica na biópsia do músculo (mecanismo), e sim massa muscular (realidade);
O que importa não é resistência à insulina 1 hora após uma refeição rica em gordura (mecanismo), e sim reversão do diabetes (realidade).
O que importa não é flora intestinal (mecanismo), e sim reversão de síndrome metabólica (realidade).
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Não estamos mais na idade média. A Santa Inquisição não irá queimar quem duvida das hipóteses postuladas por pessoas famosas.
Se quisermos saber se uma pedra pesada cai mais rápido ou não, basta fazer um experimento, não precisamos perguntar a opinião de Aristóteles sobre o que os mecanismos dizem que deveria acontecer.
Nenhum estudo de mecanismo altera NADA em relação à realidade. Sua única função é postular hipóteses. Tais hipóteses são testadas em ensaios clínicos randomizados. Uma vez que os ensaios clínicos tenham sido conduzidos, novos estudos de mecanismo que estejam em desacordo com os resultados observados são tão inúteis quanto os cálculos de André Sainte-Laguë sobre o voo dos insetos.
A realidade tem primazia sobre os mecanismos. E os estudos com desfechos concretos têm primazia sobre estudos com desfechos substitutos.