Mediterrânea e Keto: iguais para diabetes?

Resumo:
1) Um novo estudo comparou uma “dieta mediterrânea” versus uma dieta cetogênica para pré-diabetes e diabetes
2) Não houve dieta mediterrânea neste estudo – a dieta chamada Med-PLUS era uma dieta low-carb pisco-vegetariana (vegetariana com peixe), sem nenhum farináceo integral, portanto sem pão, sem macarrão, sem biscoito, sem flocos de aveia. Guarde essa informação
3) O estudo não encontrou diferença, mas o tamanho da amostra impede que se afirme isso
4) As alterações de perfil lipídico observadas com a cetogênica (aumento do HDL, redução dos triglicerídeos e aumento do LDL), nos níveis observados no estudo, não aumentam o risco cardiovascular
5) Foi um estudo negativo por número insuficiente de participantes

Foi publicado um novo ensaio clínico randomizado do grupo do Dr. Cristopher Gardner. O Dr. Gardner é um pesquisador sério, e já citamos estudos dele aqui no blog. O mais recente foi o estudo que comparava uma dieta low-fat sem porcarias versus uma dieta low-carb sem porcarias – chamei aquela postagem de O Triunfo da Dieta Low-Crap. Naquele estudo, Gardner pretendeu mostrar que a qualidade das dietas importa mais do que sua distribuição de macronutrientes. Low-carb costuma ser MUITO melhor do que low-fat, mas não no estudo de 2018. Um dos motivos é que low-fat costuma ter açúcar e farinha liberados, e o Dr. Gardner desenhou o estudo com as “melhores” versões de cada dieta, e a perda de peso foi a mesma, na média. Um detalhe importante que precisa ser salientado é que foi permitido aos dois grupos, naquele estudo, aumentar a gordura e os carboidratos até um nível que fosse ”confortável”. Assim, o estudo de fato comparou uma dieta não muito low-carb (130g de carboidratos por dia) com uma dieta não muito low-fat (42 gramas de gordura por dia) e ambos emagreceram a mesma coisa – simplesmente porque ambos retiraram açúcar e alimentos ultraprocessados. Por que contei essa história? Porque é preciso entender que Chris Gardner é uma pessoa com uma missão – na verdade, duas. A primeira é mostrar que os macronutrientes (gordura, carboidratos) não interessam, o que interessa é a qualidade das dietas (observe-se que essas coisas não são excludentes: low-carb pode ser melhor para diabetes, por exemplo, e ainda assim a qualidade da dieta continuará a ser importante). A segunda é que Gardner é vegetariano (dito por ele, em uma conferência na qual eu estava presente), o que o faz preferir dietas mais ricas em carboidratos.

O novo estudo do grupo chefiado por Gardner tem o mesmo viés, mas aplicado a pré-diabetes e diabetes tipo 2:

A ideia – muito boa – foi a seguinte: comparar uma dieta cetogênica (very low-carb, nos moldes propostos por Steve Phinney, a chamada cetogênica bem formulada) versus uma dieta mediterrânea “plus”. E o que diabos seria uma dieta mediterrânea plus? É uma dieta baseada em plantas, nas quais o açúcar estava proibido, bem como os grãos refinados. A fonte de proteína animal permitida era peixe (e, depois das primeiras 4 semanas, laticínios), a gordura era azeite de oliva. E há um pequeno detalhe que está enterrado nos métodos do estudo, mas que é fundamental: só se permitiam grãos integrais intactos. Ou seja, não se permitia farinha integral. Nesta dieta mediterrânea “plus”, não havia pão integral, nem massa integral, nem biscoito integral, nem aveia em flocos. O trigo consumido, por exemplo, era apenas na forma de “farro”:

LEGENDA: Farro – uma forma de consumir grãos integrais INTACTOS. Você vai ler na imprensa que a dieta era rica em grãos integrais – mas era grãos inteiros, como o trigo do Farro – nesta dieta mediterrânea NADA convencional, não havia pão integral nem nada do tipo, diferentemente do que se come em qualquer país do Mediterrâneo, e diferentemente do que qualquer pessoa entenderá ao ler “dieta mediterrânea”..

Veja você mesmo:

E olhe esse trecho:

[Eles dão aqui o exemplo do farro (que eu nunca havia ouvido falar) apra deixar claro que não vale grãos integrais moídos – farinhas, e portanto pães, massas e biscoitos integrais – se quiser comer o grão, é o raio do grão INTACTO (que em geral é reservado para as galinhas e pombos)]

Em outras palavras, o estudo estava comparando duas dietas low-carb! Uma very low-carb, e outra low-carb moderada. Já sabemos, pela literatura, que ambos os tipos de low-carb melhoram diabetes. Mas também sabemos que very low-carb tende a ser melhor – há metanálises que mostram isso.

Mas o estudo mostrou que ambas foram iguais (a hemoglobina glicada melhorou igualmente em ambas). Mas será que este estudo prova mesmo isso?

COMO FOI O ESTUDO.

O estudo é um ensaio clínico randomizado do tipo crossover: metade das pessoas fez uma dieta por 12 semanas, e depois trocou para a outra, e a outra metade fez o inverso. Nas primeiras 4 semanas, os alimentos foram fornecidos, e depois as pessoas compravam a comida. Mas houve problemas. 

Primeiro (e maior problema): não houve cálculo de tamanho da amostra. Quando desenhamos um ensaio clínico randomizado, nós estimamos a magnitude da diferença que esperamos ver entre os grupos (baseado na literatura já existente, o que não seria difícil neste caso) e calculamos o tamanho da amostra necessária. Isto é especialmente importante para que um resultado NEGATIVO seja confiável. Com uma amostra pequena, a diferença observada entre os grupos pode não atingir a significância estatística apenas pelo fato de a amostra ser pequena, mesmo que a diferença exista e seja real. Mas o artigo deixa claro que o que determinou o tamanho da amostra foi a disponibilidade de pacientes na clínica de um dos autores:

E o número final foi muito, MUITO baixo – 33 pessoas (16 em um grupo e 17 em outro). Com tão poucos participantes, a diferença entre os grupos precisaria ser muito grande para atingir a significância estatística – mas não se espera uma diferença assim tão grande quando se compara duas dietas low-carb.

O segundo problema é que os pacientes foram altamente selecionados. Considerou-se pré-diabetes uma hemoglobina glicada de 5,7 a 6,4, e diabetes uma hemoglobina glicada de 6,5 ou mais. Neste estudo, apenas 13 dos 33 pacientes eram diabéticos. E sabe qual era a hemoglobina glicada média dos pacientes diabéticos que entraram neste estudo? Era 7%. E a média do grupo como um todo era 6%. Em uma população cuja Hb glicada média é de 6%, a magnitude das melhoras esperadas é pequena! Como mostrar superioridade de uma estratégia low-carb sobre outra estratégia low-carb com pacientes com pouca doença? O número de pacientes teria de ser ainda maior para mostrar alguma diferença em um grupo com controle glicêmico já bom.

O terceiro problema foi que havia 8 pacientes usando sulfoniureias (medicamentos que aumentam a insulina e podem provocar hipoglicemia). Enquanto os pacientes estavam nas 12 semanas de low-carb, as sulfoniureias foram totalmente suspensas (o que é correto). Mas enquanto estavam nas 12 semanas de Med-plus, as doses foram apenas reduzidas. O que quer dizer que o grupo da mediterrânea ficou recebendo mais medicação do que o grupo da cetogênica. A comparação da hemoglobina glicada, portanto, fica injusta.

O quarto problema foi que a Covid-19 interferiu com o estudo justamente entre as primeiras 12 e as segundas 12 semanas. Algumas das dietas que deveriam ter durado 12 semanas duraram até 24 semanas (!). Ficou uma zona. Quando os autores utilizaram apenas os dados das primeiras 12 semanas, low-carb (keto) foi melhor. Não temos como saber se isso é real ou se é obra do acaso. Com 33 pacientes, não temos como saber se tudo aqui não é obra do acaso. Abaixo, o trecho em que os autores admitem isso:

A perda de peso foi semelhante em ambos os grupos, muito embora não tenha havido restrição calórica voluntária (tratava-se de um estudo ad libitum, isto é, onde se comia de acordo com a fome). Isto mostra que low-carb emagrece sem fome. E, como já escrevemos em outra postagem, uma dieta low-carb cetogênica não necessariamente emagrece mais do que uma não cetogênica (leia aqui). A perda de peso foi em torno de 6,5 Kg ao final do estudo.

Observe o seguinte gráfico – em azul, a dieta KETO; em amarelo, a dieta Med-PLUS. O que você vê?:

A direção das mudanças é clara: hemoglobina glicada caiu mais na KETO, insulina caiu mais na KETO, LDL aumentou mais na KETO (o que é esperado), o HDL aumentou mais e triglicerídeos caíram mais na KETO, ALT (a mesma TGP, que é um indicador de gordura no fígado) caiu mais na KETO e o peso caiu mais na KETO. Acontece que, baseado neste estudo, eu posso dizer apenas que os triglicerídeos caíram mais e o LDL aumentou mais na KETO, pois o restante não foi estatisticamente significativo. A hemoglobina glicada, numericamente falando, ficou menor na KETO, mas o P foi 0,11, ficando acima do limite de significância estatística tradicional de 0,05. Mas, como qualquer um que conhece o básico de bioestatística sabe, isso tem a ver com o tamanho da amostra. Os autores disseram claramente – foram 33 pacientes apenas por uma questão de “disponibilidade”. MAS SOUTO, COMO VOCÊ SABE QUE O PROBLEMA É O N PEQUENO E NÃO QUE, DE FATO, AS DUAS DIETAS SÃO IGUAIS? Saber eu não sei, mas posso inferir isso pelo fato de que já há evidências de melhor qualidade (metanálises de ensaios clínicos randomizados) mostrando que, quanto mais low-carb, maior a queda a hemoglobina glicada (veja esta postagem):

Repetindo para que fique claro (como o gráfico acima mostra): nós já sabemos que dietas mais pobres em carboidrato reduzem mais a hemoglobina glicada, o que é óbvio, visto que quanto menos glicose se consome, menos a glicose no sangue sobe. E a hemoglobina glicada também caiu mais no estudo atual – mas com 33 pacientes, não se atingiu a significância estatística.

O estudo mediu, com o uso de monitorização contínua de glicose, as flutuações da glicose dos participantes. Estes dados (cujo detalhamento ficou relegado ao material suplementar do estudo) confirmam o que dita a lógica: a glicose ficou mais tempo no alvo e variou muito menos durante a fase KETO do que durante a fase Med-PLUS:

No parágrafo acima, está dito que houve uma maior redução média da glicose no grupo KETO; que ambos os grupos ficaram mais tempo no alvo de glicose, mas que a melhora foi maior no grupo KETO, e que o coeficiente de variação, isto é, o quanto a glicose teve altos e baixos, foi menor no grupo KETO do que no grupo Med-PLUS.

Qual o ”SPIN” (versão dos fatos) que os autores salientaram e a imprensa salientará?

O estudo mostrou que duas dietas low-carb produziram benefício em pacientes com pré-diabetes e diabetes leve, e o número pequeno de participantes não permitiu que a diferença entre as duas atingisse significância estatística. Mas o SPIN, isto é, a argumentação dos autores foi em outro sentido: eles sugerem que a “mediterrânea” (que nada teve de dieta mediterrânea de verdade) foi SUPERIOR à cetogênica pois ambas tiveram o mesmo efeito (como vimos, não é bem assim), mas o LDL caiu um pouco na mediterrânea e subiu um pouco na cetogênica, e que isso mostra que low-carb é perigosa. Por onde começar…

Quando o LDL aumenta, mas os triglicerídeos caem e o HDL aumenta, o risco cardiovascular tende não apenas a não aumentar, mas pode de fato DIMINUIR. Se o paciente deixa de ser diabético então – o que ocorre em quase metade dos pacientes que seguem uma dieta very low-carb, nem se fala. Então, fiz o seguinte exercício: peguei na tabela 1 o típico paciente deste estudo – um homem de 60 anos, diabético, com colesterol total de 176, HDL de 48 e pressão sistólica de 120 (tive de usar as médias entre homens e mulheres, pois os dados não estava estratificados por sexo, e tive de calcular o colesterol total pela equação de Friedwald). Também imaginei que este participante típico usava estatina e medicação para pressão. A seguir, fui no material suplementar e vi quais foram as mudanças médias de LDL, HDL e triglicerídeos. Para não forçar a barra, não assumi que o paciente tenha colocado o diabetes em remissão (o que frequentemente acontece com very low-carb). E coloquei os dados na calculadora de risco cardiovascular do MESA. Abaixo, o risco antes da cetogênica. Logo após, o risco após a cetogênica:

Risco cardiovascular calculado antes da cetogênica: 12,3% em 10 anos
Risco cardiovascular calculado após a cetogênica: 12,3% em 10 anos

Por um golpe do destino, o risco cardiovascular calculado foi EXATAMENTE O MESMO antes e depois da cetogênica com as mudanças médias detectadas neste estudo! Não teria sido difícil para os autores calcular isso: me tomou uns 10 minutos.

A seguir, os autores salientam que o dieta Med-PLUS obteve mais de alguns nutrientes do que a keto, e vice-versa:

A dieta very low-carb aumentou seu consumo de B12, vitamina C, vitamina E e ômega-3, e reduziu tiamina, folato e cálcio comparado ao início do estudo; já a Med-PLUS aumentou seu consumo de folato, ômega-3 e vitaminas C e E, e reduziu seu consumo de B12 e cálcio (todos reduziram o cálcio porque a empresa que fazia as refeições não usava laticínios…)

Ou seja: ambas as dietas tem nutrientes que aumentam e nutrientes que diminuem. Mas quando li a parte em que os autores argumentam que a dieta low-carb pisco-vegetarina (sem carne vermelha) que chamaram de Med-PLUS tinha mais ferro do que a cetogênica, deixei de levar a sério, pois é evidente que ignoram um fato BÁSICO – a biodisponibilidade dos nutrientes. 98% do ferro do feijão sai nas fezes, portanto o que importa é o ferro BIODISPONÍVEL. Autores que acham que uma dieta sem carne vermelha é melhor do que uma com carne por causa do ferro simplesmente não podem ser levados a sério em todo o quesito micronurientes.

SOBRE DIETA ”MEDITERRÂNEA”

Eu realmente acho que os autores nunca estiveram na Itália ou e qualquer outro país mediterrâneo (estou sendo irônico, a excelente Lucia Aronica, italiana, é co-autora). Não existe culinária mediterrânea sem pão e sem massa, como todo mundo sabe. E a dieta mediterrânea tem amplo sortimento de queijos, vinhos, e de carnes, especialmente embutidos – alguns dos melhores do mundo – incluindo presunto cru e salames de todo o tipo: é o oposto de uma dieta vegetariana apenas com peixe. Consome-se vitela, carne de ovelha, de porco e de gado. A única coisa nesta dieta que foi chamada de Med-PLUS que lembra o mediterrâneo é o azeite de oliva. A mensagem que será passada para a imprensa é que uma ”dieta mediterrânea” é melhor para o diabetes do que uma dieta cetogênica. Mas o que o estudo mostrou é que uma dieta low-carb moderada, pisco-vegetariana, sem pão, nem massa nem biscoito nem flocos de aveia é provavelmente um pouco pior do que uma dieta very low-carb, mas a diferença não foi estatisticamente significativa pois não houve cálculo de tamanho da amostra. A escolha do nome dieta mediterrânea neste estudo teve, na minha opinião, o objetivo de ganhar a simpatia da comunidade nutricional e da imprensa, dada a popularidade desse mal definido conceito. Como a maioria das pessoas jamais lerá a íntegra do estudo, esta falsa designação de “mediterrânea” ao que, em verdade, foi uma dieta low-carb moderada semi-vegetariana, induzirá muitas pessoas ao erro, e elas não entenderão o motivo de seu diabetes não melhorar comendo pão integral, macarrão, e aveia em flocos.

O que se pode aproveitar deste estudo?

Houve perda de peso e melhora do diabetes em ambos os grupos. E a maioria dos pacientes preferiu a dieta low-carb moderada (falsamente chamada de mediterrânea). Isso significa que, para pacientes com pré-diabetes (a maioria dos casos do estudo) ou diabetes leve e bem controlado (13 pacientes do estudo), uma restrição de carboidratos mais moderada, excluindo-se açúcar, massa, pão, biscoitos e flocos de aveia (mesmo integrais), mas mantendo frutas e tubérculos, pode ser suficiente para ter resultados clinicamente significativos.

Agora, é só aguardar as manchetes na imprensa sobre como uma dieta mediterrânea (ilustrada com alimentos que não existiam neste estudo, como pão e macarrão) irá curar o diabetes, enquanto a cetogênica (que deverá ser uma foto de uma pilha de bacon) irá lhe matar do coração.

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