Stress versus colesterol – divagações sobre causa e efeito

Existe um artigo, do qual ouvi falar ou sobre o qual li certa feita, que finalmente me caiu nas mãos. A data é 1958. Portanto, este estudo precede o pensamento único, a unanimidade sobre a doença cardiovascular e dieta. Era uma época em que várias hipóteses eram cogitadas. E é absolutamente fascinante.

Mudanças no colesterol sérico e no tempo de coagulação do sangue em homens submetidos a variações cíclicas de stress ocupacional

A introdução do artigo vale ouro – eis que escrita em 1958 – colocando já em dúvida NA ÉPOCA a crença de que a gordura na dieta pudesse explicar adequadamente os dados epidemiológicos de diferenças entre a mortalidade dos povos, e de que outros fatores no estilo de vida, incluindo a quantidade de stress a que as pessoas estavam submetidas, fosse importante. Por exemplo:

Como dizem os autores nesse trecho, o mesmo tipo de estudo epidemiológico que havia encontrado correlação entre gordura na dieta e doença cardiovascular, havia encontrado uma correlação MAIS FORTE entre stress socioeconômico e doença cardiovascular. A decisão de que a correlação que importava era a da gordura, e não o stress ou os carboidratos foi – hoje sabemos – completamente arbitrária.

Os autores resolveram, então, conduzir um estudo em uma profissão associada a MUITO stress – contadores. Por que contadores? Porque o stress dos contadores é sazonal. Para aqueles que fazem apenas imposto de renda, o stress máximo ocorre antes do final de abril (nos EUA, assim como aqui, o final de abril é a data limite para entregar as declarações). Para os contadores envolvidos com “finanças corporativas”, o stress concentrava-se em abril e em janeiro (por causa do balanço das empresas, quero crer).

Foram estudados 40 contadores, todos homens, sendo 18 envolvidos com imposto de renda (grupo A) e 22 envolvidos com finanças corporativas (grupo B). Foram todos estudados de janeiro a junho, com duas visitas por mês nas quais eram detalhadamente entrevistados sobre seus níveis de stress, e coletavam sangue. Diários alimentares detalhados (e não questionários furados para tentar lembrar o que comeram no mês passado) foram também coletados. Além disso, foram pesados e anotaram a quantidade de exercício durante todo o período, a cada 2 semanas.

O gráfico abaixo é um pouco complicado, mas é absolutamente fascinante:

  • Em baixo, vemos os períodos de maior stress de cada grupo como tarjas pretas (ambos, A e B, por exemplo, tinham stress em abril: 4/2 e 4/15).
  • Focando-nos no GRUPO A: o colesterol médio ficou em torno de 205 em janeiro, chegando a um pico de 230 em abril, voltando a cair depois
  • Olhando agora o grupo B, há um grande pico em janeiro, coincidindo com o stress de janeiro (ausente para o outro grupo), e novamente em abril

O artigo descreve em detalhes, em um estilo de inglês que atesta tanto maior refinamento intelectual quanto mais cuidado com os detalhes nos anos 1950 do que nos dias de hoje, as situações individuais de uns 20 contadores, incluindo por exemplo situações de doença na família, que também contribuíam para o stress, de modo a contabilizar tais fenômenos em nível individual (afinal, não somos MÉDIAS). E o resultado é incrível:

Mais uma vez, CADA pico de colesterol corresponde, de forma incrivelmente previsível, às tarjas pretas de alto stress. São dados que dispensam testes estatísticos. Em todo o caso, foram estatisticamente significativos.

É importante salientar que a dieta e o exercício permaneceram estáveis durante todo o período do estudo – os níveis de colesterol variaram EXCLUSIVAMENTE em relação aos níveis de stress ocupacional dos contadores.

Quando considerados como um grupo, o colesterol médio dos contadores em seu momento de maior stress foi de 252, versus 210 no momentos de menor stress. Mais uma vez, a estatística é desnecessária – em todo o caso, P<0,001.

Outra observação interessante (uma vez que, nos dias de hoje, uma medida alterada é capaz de colocar uma pessoa em uso de medicação eternamente):

“Também foi interessante que poucos pacientes mostraram valores constantes de colesterol durante os 5 meses. Na verdade, quando os valores máximos e mínimos observados em cada indivíduo foram obtidos e feitas as médias, havia uma diferença média de 63 mg/dL”.

Vale repetir – em um período de 5 meses, a média das diferenças de colesterol entre os valores máximos e mínimos destes 40 indivíduos foi de 63 mg/dL!!! Lembre-se disso, os valores variam, e MUITO, independentemente de dieta ou exercício (mas na dependência de stress, e provavelmente de outras variáveis aleatórias).

A surpresa

Depois que o estudo já havia iniciado, em 8 de janeiro de 1957, um dos contadores corporativos, de apenas 48 anos, teve um infarto fulminante durante o período de máximo stress, e morreu. Uma necrópsia demonstrou um trombo (coágulo) fresco (recente) na artéria coronária descendente anterior. O dentista do paciente falou aos investigadores que, poucos dias antes, ficara impressionado com a velocidade da coagulação do sangue do paciente após uma intervenção dentária. Isso levou os investigadores a avaliar também o tempo de coagulação dos contadores, em relação aos períodos de stress e de calmaria. Os resultados são nada menos que SURPREENDENTES:

Mais uma vez, basta olhar o gráfico – não precisa de estatística – o tempo de coagulação caiu quase pela metade no período de maior stress (tarjas pretas). Para os não médicos: quando mais propenso à coagulação for o sangue, maior a chance de se formar um coágulo (trombo) no interior de uma das coronárias, levando a um infarto (a Aspirina, por exemplo, é usada para diminuir a coagulabilidade do sangue).

A seção de discussão do artigo vale a pena ser lida na íntegra. Segue um trecho fascinante: 

 

Em resumo, o argumento é de que os mesmos povos com baixo colesterol nos quais se acreditava que o baixo consumo de gordura fosse o importante, também eram sociedades com menos stress da vida moderna nos anos 1950. Além disso, o fato de que na época (como hoje) não havia aumento no consumo de gordura ou dos níveis de colesterol, ao passo que havia aumento da doença coronariana, sugeria que o aumento da coagulabilidade do sangue fosse talvez mais importante. No mínimo interessante.

Só para constar, esse não foi o único estudo a mostrar a relação entre lipídios séricos e stress. Veja, por exemplo, este estudo inglês de 2005:

Neste estudo, os autores avaliaram em testes computadorizados como voluntários lidavam com o stress, e 3 anos depois, documentaram que os mais estressados tinham níveis mais elevados de colesterol total, LDL e relação colesterol total/HDL. A hipótese seria a de que pessoas cronicamente estressadas tendem a desenvolver dislipidemia.

O fenômeno de Roseto

Quando li o estudo de 1958, imediatamente lembrei do Fenômeno Roseto – já ouviu falar?? Duvido – afinal, é uma GRANDE pedra no sapato da consenso vigente.

Transcrevo, abaixo, a introdução do livro de Malcom Gladwel, Fora de Série, que foi transcrito por Augusto de Franco em seu blog (original aqui), que trata deste fenômeno peculiar:

O MISTÉRIO DE ROSETO



Malcolm Gladwell (2008)

Roseto destaca-se das pequenas cidades da Pensilvânia pelo grau de interesse acadêmico que atraiu. John G. Bruhn e Stewart Wolf publicaram dois livros sobre seu trabalho em Roseto: The Roseto story (Norman: University of Oklahoma Press, 1979) e The power of clan: the influence of human relationships on heart disease (News Brunswick: Transactio Publishers, 1993). Para uma comparação entre Roseto, Valfortore, Itália e Roseto, Pensilvânia, Estados Unidos, veja Carla Bianco: The two Rosetos (Bloomington: Indiana University Press, 1974).

Roseto Valfortore situa-se 169Km a sudeste de Roma, nos contrafortes dos Apeninos, na província italiana de Foggia. No estilo das aldeias medievais, a cidade se organiza em torno de uma grande praça central. Diante dela está o Palazzo Marchesale, o palácio da família Saggese, no passado a maior proprietária de terras da região. Uma arcada lateral conduz a uma igreja, a Madonna del Carmine – Nossa Senhora do Monte Carmine. Degraus de pedra estreitos sobem as encostas dos montes, flanqueados por grupos de casas de pedra de dois andares e telhas vermelhas.

Durante séculos, os paesani, ou camponeses, de Roseto trabalharam nas pedreiras de mármore das montanhas em torno da cidade ou cultivaram os campos no vale abaixo, descendo de 6 a 8km de manhã e, depois, fazendo o longo percurso de volta à noite. A vida era dura. Os moradores desse lugar mal sabiam ler, eram paupérrimos e não tinham muita esperança de melhorar economicamente. Foi quando no final do século XIX chegou à região a notícia de que havia uma terra de oportunidades do outro lado do oceano.

Em janeiro de 1882, um grupo de 11 moradores da cidade – 10 homens e um menino – zarparam para Nova York. Passaram a primeira noite nos Estados Unidos dormindo no chão de uma taverna em Mulberry Street, na Pequena Itália de Manhattan. Depois se aventuraram para o oeste, até encontrarem trabalho numa pedreira de ardósia a 145Km da cidade, perto de Bangor, Pensilvânia. No ano seguinte, mais 15 pessoas de Roseto trocaram a Itália pela América, e vários membros desse grupo foram se juntar aos que já haviam chegado. Esses novos imigrantes, por sua vez, enviaram notícias a Roseto sobre a promessa do Novo Mundo. Em pouco tempo, outros grupos de conterrâneos seus começaram a fazer as malas e rumar para a Pensilvânia. O pequeno fluxo inicial de imigrantes acabou se transformando numa torrente. Em 1894, cerca de 1.200 habitantes de Roseto solicitaram passaportes para os Estados Unidos, deixando ruas inteiras de sua cidade natal completamente abandonadas.

Essas pessoas começaram a comprar terras numa encosta rochosa, ligada a Bangor por apenas uma trilha de carroça íngreme e sulcada. Construíram grupos de casas de pedra de dois andares, com tetos de ardósia, em ruas estreitas que se estendiam de alto a baixo na encosta. Ergueram uma igreja e batizaram-na de Nossa Senhora do Monte Carmelo. A via principal onde ela se localizava ganhou o nome de avenida Garibaldi, em homenagem ao grande herói da unificação italiana. No princípio, chamaram sua cidade de Nova Itália. Mas logo mudaram o nome para Roseto, que pareceu mais apropriado, pois quase todos os seus moradores eram procedentes da mesma aldeia na Itália.

Em 1896, um jovem e dinâmico sacerdote – padre Pasquale de Nisco – assumiu a Igreja de Nossa Senhora do Monte Carmelo. De Nisco criou sociedades espirituais e organizou festas. Incentivou as pessoas a limpar os terrenos e plantar cebola, feijão, batata e árvores frutíferas nos grandes quintais de suas casas. Distribuiu sementes e mudas. Roseto ganhou vida. A população passou a criar porcos e a cultivar uvas para o vinho caseiro. Escolas, um parque, um convento e um cemitério foram construídos. Pequenas lojas, confeitarias, restaurantes e bares começaram a se instalar ao longo da Avenida Garibaldi. Mais de 12 fábricas surgiram, produzindo blusas para o comércio de roupas.

Na vizinha Bangor, a população era predominantemente galesa e inglesa. Na outra cidade mais próxima, a concentração era de alemães. Dadas as relações hostis entre ingleses, alemães e italianos naquela época, Roseto continuou a abrigar exclusivamente sua própria população. Quem subisse e descesse suas ruas nas primeira décadas do século XX ouviria apenas italiano, mas não qualquer italiano – somente o típico dialeto sulista de Foggia, falado na Roseto européia. A Roseto americana era seu próprio mundo minúsculo e auto-suficiente – praticamente desconhecido pela sociedade em volta. E poderia ter permanecido assim não fosse um homem chamado Stewart Wolf.

Wolf era médico. Especialista em estômago e digestão, lecionava na Faculdade de Medicina da Universidade de Oklahoma. Passava os verões numa fazenda na Pensilvânia, não longe de Roseto – embora isso não significasse grande coisa, pois a cidade estava tão concentrada em seu próprio mundo que era possível morar ao lado e não saber muito sobre ela. “Certa vez – acho que no final da década de 1950 –, eu estava lá e fui convidado para dar uma palestra na sociedade médica local”, Wolf contou, anos depois, numa entrevista. “Após a apresentação, um dos médicos me chamou para tomar uma cerveja. Enquanto bebíamos, ele disse: ‘Pratico a medicina há 17 anos. Recebo pacientes de toda a região, mas raramente encontro alguém de Roseto com menos de 65 anos que tenha doença cardíaca.”

Wolf ficou surpreso. Tratava-se da década de 1950, anos antes do advento dos remédios que reduzem o colesterol e das rigorosas medidas de prevenção de problemas cardíacos. Os infartos constituíam uma epidemia nos Estados Unidos – eram a principal causa de mortes em homens com menos de 65 anos. A experiência mostrava que era impossível ser médico naquela época e não se deparar com esse tipo de doença.

Wolf decidiu investigar. Conseguiu o apoio de alguns alunos e colegas da Universidade de Oklahoma. Eles reuniram os atestados de óbito dos moradores da cidade, procurando os mais antigos que conseguissem obter. Analisaram os registros médicos, leram os históricos e traçaram as genealogias das famílias. “Decidimos fazer um estudo preliminar. Começamos em 1961. O prefeito permitiu que usássemos a sala do conselho municipal. Instalamos pequenas cabines para coletar sangue e fazer eletrocardiogramas. Ficamos lá durante quatro semanas. Depois, as autoridades nos cederam a escola, onde trabalhamos durante o verão. Convidamos a população inteira de Roseto para ser testada”, conta Wolf.

Os resultados foram surpreendentes. Em Roseto, quase ninguém com menos de 55 anos havia morrido de ataque cardíaco ou mostrava sintomas de problemas do coração. Para homens acima de 65 anos, a taxa de mortalidade por doença cardíaca era cerca de metade da que se registrava nos Estados Unidos de modo geral. Além disso, a taxa de mortalidade por todas as causas naquela cidade era, espantosamente, 30 a 35% menor do que o estimado.

Wolf convidou para ajudá-lo o amigo John Bruhn, sociólogo da Universidade de Oklahoma. “Contratei estudantes de medicina e alunos de sociologia como entrevistadores. Fomos de casa em casa em Roseto. Conversamos com toda pessoa maior de 21 anos”, Bruhn se lembra. Embora isso tenha acontecido há mais de 50 anos, ele deixou escapar uma sensação de espanto ao mencionar o que descobrira. “Não havia suicídios, alcoolismo nem vício de drogas. O número de crimes era mínimo. Ninguém dependia da previdência social. Então procuramos casos de úlcera péptica. Não havia. Aquelas pessoas estavam morrendo de velhice. Nada mais.”

Os colegas de profissão de Wolf tinham um nome para um lugar como Roseto – uma cidade que estava à margem da experiência do dia-a-dia, onde as regras normais não se aplicavam. Roseto era uma outlier.

A primeira hipótese imaginada por Wolf foi a de que os habitantes de Roseto seguiam práticas alimentares do Velho Mundo que os tornavam mais saudáveis do que os demais americanos. Mas em pouco tempo ele constatou que isso não era verdade. Aquelas pessoas cozinhavam com banha de porco, e não com azeite de oliva, a saudável opção usada na cozinha mediterrânea. Na Itália, a pizza era uma crosta fina com sal, azeite e talvez anchovas, tomate e cebola. Na Pensilvânia, ela combinava massa de pão com salsicha, pepperoni, salame, presunto e às vezes ovos. Doces como biscotti e taralli, que na Itália costumavam ser reservados para o Natal e a Páscoa, em Roseto eram consumidos o ano inteiro. Quando Wolf pediu que nutricionistas analisassem os hábitos alimentares da população local, constatou que 41% das calorias – uma porcentagem imensa – eram provenientes de gorduras. E nenhum morador daquela cidade acordava de madrugada para praticar yoga ou correr 10Km. Muitos eram fumantes inveterados e enfrentavam obesidade.

Se a causa daquela saúde acima da média não estava na dieta nem na prática de exercícios físicos, estaria então na genética? Como aquelas pessoas constituíam um grupo coeso originário da mesma região da Itália, Wolf passou a considerar a possibilidade de que elas pertencessem a uma estirpe particularmente robusta, com grande resistência a doenças. Então, rastreou parentes desses indivíduos em outras regiões dos Estados Unidos para ver se eles compartilhavam a saúde notável dos primos da Pensilvânia. Não foi o caso.

Wolf examinou em seguida a própria região de Roseto. Será que viver nos contrafortes do lesta da Pensilvânia poderia oferecer algum benefício à saúde? As duas cidades mais próximas dali eram Bangor, situada um pouco abaixo dos montes, e Nazareth, a alguns quilômetros de distância. Ambas tinham mais ou menos o tamanho de Roseto e eram habitadas por imigrantes europeus também muito trabalhadores. Wolf examinou os registros médicos das duas cidades. Para homens acima de 65 anos, as taxas de mortalidade por doenças cardíacas em Nazareth e Bangor eram cerca de três vezes mais altas do que em Roseto. Outra pista falsa.

Wolf passou a desconfiar de que o segredo de Roseto não era nada que haviam imaginado, como dieta, exercícios físicos, genes e geografia – tinha que ser a própria Roseto. À medida que começaram a caminhar pela cidade e a falar com os moradores, Wolf e Bruhn descobriram o motivo. Observaram como as pessoas interagiam, parando para conversar em italiano na rua ou cozinhando umas para as outras nos quintais. Tomaram conhecimento dos clãs familiares que se mantinham sob a estrutura social do lugar. Viram como em muitas casas três gerações moravam sob o mesmo teto – e o respeito dedicado aos avós. Foram à missa na Igreja Nossa Senhora do Monte Carmelo e observaram o efeito unificador e calmante daquele ambiente. Contaram 22 organizações cívicas em uma cidade com pouco menos de 2 mil pessoas. Perceberam o espírito igualitário particular da comunidade, que desestimulava os ricos a ostentar o sucesso e ajudava os malsucedidos a encobrir seus fracassos.

Ao transplantarem a cultura paesani do sul da Itália para os montes do lesta da Pensilvânia, aquelas pessoas criaram uma estrutura social altamente protetora que era capaz de isolá-las das pressões do mundo moderno. Elas eram saudáveis por causa do lugar onde viviam, do mundo que haviam criado para si mesmas em sua minúscula cidade nas montanhas.

“Ainda me lembro de quando fui a Roseto pela primeira vez. Naquela época víamos três gerações reunidas nas refeições em família. Havia todas aquelas padarias, as pessoas subindo e descendo as ruas, sentando-se nas varandas para conversar umas com as outras, as fábricas de blusas onde as mulheres trabalhavam durante o dia enquanto os homens se ocupavam nas pedreiras de ardósia. Aquilo era mágico”, diz Bruhn.

Quando Bruhn e Wolf apresentaram suas descobertas à comunidade médica, enfrentaram uma grande reação de ceticismo. Eles participaram de conferências em que seus colegas estavam exibindo longas relações de dados, dispostos em gráficos complexos, para se referir a um tipo específico de gene ou de processo fisiológico. Eles, por sua vez, estavam falando dos benefícios misteriosos e mágicos de parar para conversar com as pessoas na rua e dos efeitos positivos de familiares de três gerações de viverem sob o mesmo teto. Segundo o pensamento convencional da época, uma vida longa dependia, em grande parte, de quem éramos, ou seja, de nossos genes. E também das decisões que tomávamos em relação à escolha dos alimentos, da nossa opção quanto à prática de exercícios físicos e, ainda, da eficácia do sistema médico. Ninguém estava acostumado a associar a saúde à comunidade.

Wolf e Bruhn tiveram que convencer a área médica a pensar na saúde e nas doenças cardíacas de um modo totalmente diferente. Afinal, não dá para entender por que alguém é saudável analisando apenas suas opções ou ações pessoais. É necessário olhar além do indivíduo. E também conhecer a cultura da qual ele faz parte, saber quem são seus amigos, sua família e a cidade de origem de seus familiares. É preciso ainda aceitar a idéia de que os valores do mundo que habitamos e as pessoas que nos cercam exercem um grande efeito em quem nós somos. Neste livro, quero fazer por nossa compreensão do sucesso o que Stewart Wolf fez pelo entendimento que agora temos da saúde.”

Percebem a possível conexão? Essas pessoas fumavam muito, comiam gordura, comiam açúcar, muitas eram obesas, não faziam mais exercício do que os trabalhadores das cidades vizinhas, e no entanto tinham METADE da mortalidade cardíaca de seus vizinhos e 33% menos mortalidade por TODAS as causas. E o que os pesquisadores descobriram? Uma sociedade com alto grau de suporte familiar e social, sem crime, sem solidão, sem stress.

Por que não se fala do stress? Seria porque esses são estudos pequenos e antigos, de quando não tínhamos marcadores de risco mais sofisticados e tratamentos mais eficazes?

O estudo INTERHEART

Em 2004, foi publicado o maior estudo multicêntrico internacional de caso-controle com o objetivo de estabelecer fatores de risco associados ao infarto do miocárdio. O Interheart é diferente de outros estudo do gênero por ter agregado dados de 52 países, com cerca de 15 mil casos de pessoas infartadas comparadas com 15 mil controles. É um estudo observacional de caso-controle, ou seja, estabelece apenas associações e não causa e efeito. Mas você verá onde quero chegar; eis o estudo, publicado na revista Lancet em 2004:

Dentre as várias variáveis coletadas, os autores escolheram as NOVE mais importantes, isto é, com maior associação estatística com risco de infarto do miocárdio. Eis a lista:

Pontos à esquerda indicam fatores protetores: consumo de vegetais/frutas, exercício físico, consumo moderado de álcool. Pontos à direita indicam aumento de risco: fumo, diabetes, hipertensão, obesidade abdominal, ÍNDICE PSICOSSOCIAL, e relação ApoB/ApoA1. Índice psicossocial é uma medida de stress.

Alguns pontos de interesse:

  • Boa parte dos fatores de risco são modificáveis;
  • O stress teve um impacto tão grande quanto os demais fatores “clássicos”;
  • Uma dieta Low Carb Páleo modifica para melhor os seguintes fatores: diabetes, hipertensão, obesidade abdominal, aumento do consumo de vegetais, e, EM GERAL, redução da relação relação ApoB/Apo-A1.

O que é ApoB / Apo-A1? Foge ao objetivo desta postagem detalhar esse assunto (para quem quiser MUITOS detalhes, leia aqui). Para fins de nossa discussão atual, ApoB / Apo-A1 é uma forma mais precisa de medir LDL / HDL. Ou seja, quanto menor o LDL, e quanto maior o HDL, melhor. Dietas low carb tendem a elevar UM POUCO o LDL e bastante o HDL, daí a melhora.

CHAMA a atenção o fato de que o colesterol total e o LDL não estão entre esses fatores de risco? Por quê? Porque, como já foi abordado em outras postagens, tratam-de de fatores de risco muito ruins – os fatores acima são muito mais importantes.

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Divagações sobre causa e efeito – e se fosse ao contrário?

Os poucos autores que abordam o efeito deletério do stress sobre o colesterol sérico tendem a enxergar nisso uma plausibilidade biológica que explicaria o efeito. Neste modelo:

  • Stress -> aumento do colesterol -> doença coronariana

Mas o mesmo tipo de ilação causal já se mostrou errado no passado:

  • Gordura saturada -> aumento do colesterol -> doença coronariana.

SABEMOS que esse segundo postulado está errado, e o sabemos com ALTO nível de evidênciaa literatura toda mostra que a gordura na dieta não está associada com doença cardiovascular.

Proponho aqui uma hipótese alternativa: a de que o colesterol elevado possa ser um MARCADOR de um estilo de vida estressante (ou sabe-se lá de que outras coisas relacionadas com disfunção endotelial), e de que esse stress possa ser uma peça de uma sequência causal que possa levar à doença coronariana.

Hipótese:

  • Stress psicossocial -> produção de mediadores inflamatórios e catecolaminas (adrenalina, noradrenalina) -> lesão endotelial (revestimento interno das artérias) -> trombose/placa.

E o colesterol? Como vimos, aumenta secundariamente ao stress, e portanto poderia ser apenas um marcador.

Parece uma ideia absurda? Pode ser. É só uma hipótese. Mas é uma hipótese científica, que contém os dois requisitos necessários:

1) Plausibilidade biológica;

2) Pode ser testada.

Por enquanto, me parece que esta hipótese ajuda a explicar alguns paradoxos. Voltamos aqui a Roseto. Por que, em Roseto, os fatores de risco tradicionais deixam de funcionar? Será que, na ausência do stress psicossocial característico das sociedades modernas, os demais fatores de risco de Framingham e do Interheart perdem a importância? Se sim, por quê?

Por que o único estudo com estatinas que mostrou efeito sobre mortalidade geral foi justamente aquele no qual os pacientes tinham TODOS colesterol normal, mas cujo critério de entrada era proteína C reativa (um marcador de inflamação) elevado?

Para reflexão, deixo aqui um exemplo: Karelia do Norte versus Turku

A Finlândia é um dos países que foi estudado por Ancel Keys em seu estudo dos 7 países. Na região da Karelia o consumo de gordura saturada era alto, e a mortalidade cardiovascular também. Mas na região de Turku, o consumo era semelhante, e a doença cardiovascular era MUITO menos comum.

Conforme José Carlos Peixoto traduziu em seu blog:

“Mas dentro dos países o número de ataques cardíacos não mostrou nenhuma correlação com a dieta. Vamos considerar duas populações finlandesas, uma de Karelia do Norte e uma de Turku.

No princípio do estudo, 42 entre 817 homens de Karelia do Norte tiveram doença coronária do coração enquanto no distrito de Turku só 15 entre 860 teve DCC. Durante os próximos cinco anos, 16 homens faleceram de ataque cardíaco em Karelia do Norte, e só quatro no distrito de Turku. Tomando todos os fatores em consideração, os ataques cardíacos aconteceram cinco vezes mais freqüentemente em Karelia do Norte que no distrito de Turku.

Se você pensar que os nativos viveram de forma especialmente negligente em Karelia do Norte, você está errado. As condições de vida nas duas áreas eram praticamente idênticas. Em ambos os distritos, pessoas tinham vidas isoladas como fazendeiros ou lenhadores, seu peso corporal e altura eram idênticos assim como eram seus níveis de colesterol no sangue, eles fumavam de forma semelhante e eles comiam a mesma quantia de gordura poli-insaturada. Os níveis de pressão sangüínea eram ligeiramente mais altos em Karelia do Norte, e os habitantes também comeram ligeiramente mais gordura animal que aqueles vivendo em Turku.

Dr. Keys declarava que doença coronária do coração era cinco vezes mais comum na Finlândia que no Japão por causa de grandes diferenças alimentares, mas ele não explicou por que a doença coronária do coração era cinco vezes mais comuns no leste do que no oeste da Finlândia, embora as diferenças entre os fatores de risco sejam discretas. Ele mencionou que este desconcertante fator seria um achado secundário, anormal, que ele acreditou (erroneamente) que seria explicado por estudos adicionais.

Dois pesos e duas medidas é uma abordagem comum entre os proponentes da ideia dieta-coração. As observações que sustentam a teoria são alardeadas como provas positivas enquanto achados não sustentadores, se eles fossem mencionados, são considerados como “exceções raras” ou “algo que pode ainda ser explicado.”

E então, como explicar esse paradoxo?

No livro

The Great Cholesterol Con, de Malcolm Kendrick, há uma pista:

Em resumo, o que Kendrick nos conta é que, nessa região de alta mortalidade cardiovascular, após a segunda guerra mundial, uma grande parte do território foi tomado pela União Soviética, e 400 mil refugiados foram forçados a fugir para a Karelia do Norte. Todos moram na Finlândia, fazem parte do mesmo grupo étnico, comem a mesma comida e tem o mesmo colesterol, mas um pedaço da Filnândia é o paraíso na terra e a região da Karelia era povoado por meio milhão de refugiados fugidos da guerra. Não sei por que, lembro novamente da situação de Roseto versus demais cidades dos arredores. Assim como morar em Roseto nos anos 1950 era inerentemente bom, morar na Karelia nos anos 1950 era inerentemente ruim, comendo gordura ou não, fumando ou não.

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Epílogo

Esta postagem não prova nada. É apenas um exercício intelectual para demonstrar que as narrativas de causalidade (X causa Y que causa Z) são apenas isso, narrativas. Podem ser narrativas fortes e sustentadas em um mar de evidência experimental (pense, por exemplo, no modelo padrão da física de partículas), narrativas especulativas como a minha (que podem ser refutadas ou não por experimentos), e narrativas erradas (que já foram refutadas por experimentos, como é o caso da relação entre gordura na dieta e doença cardiovascular).

Mas é preciso salientar que, por mais especulativa que a teoria que acabei de apresentar possa ser, ela é ainda mais provável do que a teoria vigente, por um único motivo – a teoria vigente já foi refutada.

Por hora, o que temos são os 9 fatores de risco do interheart. Afora cigarro, bebida, exercício e stress, todos os demais são afetados positivamente por uma dieta low carb. E fumo, bebida e exercício, diferentemente de idade ou etnia, por exemplo, são variáveis completamente sob nosso controle. 

Quanto ao stress, o jeito é se mudar pra Veranópolis, nossa Roseto gaúcha.

P.S.: Se alguém no meio acadêmico quiser levar adiante, seria no mínimo uma tese de doutorado: recriar o estudo de 1958, com contadores, mas usando as ferramentas modernas: medindo marcadores inflamatórios, função endotelial, catecolaminas, perfil lipídico completo, etc. Daria para publicar no New England.

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